Não tem sido um espectáculo agradável de seguir, este do choque de frente do governo com a realidade.
Olha-se para o país como ele está e não podemos deixar de nos sentir no meio de um conto do realismo fantástico, com países e personagens do género de García Márquez ou Isabel Allende. No entanto, passado o espanto, a sensação que atinge diversos estágios e formas desemboca necessariamente numa espécie de vergonha alheia.
Já não indiciava nada de bom que a pedra angular da ciência governativa posta em prática por este governo se baseasse na ideia de que as vacas voam, e que se tenha materializado numa política que o próprio PR (aparentemente grande apreciador das suas virtudes) ainda assim denominou como a do “optimismo crónico e, às vezes, ligeiramente irritante”.
Junte-se à solidez científica deste modelo o facto de termos a extrema-esquerda do Bloco e do PC – entretanto manietadas pelo cheque em branco que passaram ao governo e em estado de letargia avançada na antecâmara, o primeiro mais que o segundo, do próximo desastre eleitoral – a aplicar um pacote de medidas “neoliberais” da mais vigorosa austeridade de investimento de que há memória em democracia, e temos todos os condimentos desta comédia de costumes.
Podemos ainda permitir-nos um outro apontamento, de que parte importante do elenco governativo, incluído o próprio PM, há não muito tempo, levara o país à bancarrota e perdeu as eleições legislativas, o que, muito sinceramente, noutro país que não esta paródia, podia indiciar um clamoroso erro de casting.
É, pois, neste país de fábula que morrem tragicamente 64 pessoas e o enredo – onde se aguarda um responsável que não aparece – já tem uma árvore atingida por um raio, que começa um incêndio horas antes. Pormenor delicioso ao nível dos dos “Cem Anos de Solidão” e que parece destinado a esconder cortes cegos e cativações orçamentais que antes punham os apoiantes deste governo a usar t-shirts contendo acusações cujo conteúdo, deve ser o tal karma, se lhes devolve na íntegra enquanto responsáveis pela aprovação dos orçamentos voadores que cativaram o dinheiro para os meios.
É também do país onde as vacas voavam que chegam notícias do rigor científico do modelo da escola única e pública que o governo abraça, segundo noticiam os jornais, e o secretário de Estado já veio confirmar: não só não é importante avaliar os alunos, como estes devem passar de ano mesmo que tenham inúmeras negativas. Se calhar, olhando a génese do modelo, a ideia é juntarem-se a mais alguns potenciais reprovados e assim vencerem a falta de competências. É, parece, o facilitismo e a mediocridade como escola de vida.
Que dizer então, neste novo mundo da realidade paralela, do extraordinário assalto aos paióis do Exército e dos maravilhosos detalhes que têm vindo a público? Antigamente era preciso outros exércitos ou movimentos de sublevação armada para pôr o Exército em causa; agora, sem um tiro e com uma carrinha, porventura com um alicate e um pé-de-cabra, entra–se 500 metros numa instalação militar, arromba-se uma porta e rouba-se (aparentemente com lista de compras) uma brutalidade de armas de guerra e munições. Não houve, disto tudo, uma suspeita, ou um suspeito, ou um tiro sequer, notas de um plano maquiavélico com meios avançados, tecnologias de ponta e grande poder de fogo, um acto de heroísmo, nada!
Apenas e só o ar desconsolado do ministro, que olha para os paióis como o condómino dos subúrbios que vê a porta arrombada quando volta de férias. É a imagem do desconsolo próprio e do dos seus (des)governados e o pânico generalizado dos nossos aliados, que assistem com estupefacção à pândega em curso.
Estes são três dos pequenos episódios do embate de frente do mundo fantástico do primeiro-ministro, ou a vaca que voa, com a realidade, e não são bonitos.
Para cúmulo, enquanto a vaca desaba com estrondo sobre os desvalidos portugueses, o chefe da banda, seguindo uma longa tradição inaugurada por José Sócrates no Quénia, vai a banhos para as Baleares.
Portugal tornou-se um daqueles casos raros e súcios em que a realidade supera a mais refinada ficção.
Advogado na norma8advogados
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Escreve à quinta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990