João Ramos, 58 anos, comanda a marcha de Alfama, que este ano se sagrou campeã pela 20ª vez. Nunca tinha achado graça à tradição, até que em 2002, num repente, pediu a um amigo que o apresentasse à pessoa certa. Não foi a primeira vez que decidiu por instinto. É procurador da República, hoje coordenador na Comarca de Castelo Branco, e na altura estava no DCIAP. Os amigos acharam que era só mais uma loucura mas ficou rendido. No final do ano passado, abraçou mais um desafio. Estava sem nada para fazer na aldeia onde vive, foi a um baile nos bombeiros e acabou por tornar-se presidente da corporação da Pampilhosa da Serra. Conversámos na sexta-feira em que percorreram as ruas de Alfama para festejar a vitória. Nos dias seguintes, viveria o inferno do fogo que chegou à sua porta.
Nasceu em Alfama?
Não, mas Alfama está relacionada com a minha terra. Sou da Pampilhosa da Serra e nasci numa altura em que o concelho sofre uma desertificação muito grande, nas décadas de 60 e 70. Muitos vêm para Lisboa, para trabalhar nas docas e na estiva. Essa comunidade instala-se sobretudo aqui. Vinham os homens à frente, o que deu origem a algo de que se fala ainda no bairro que eram as casas da malta. Vinha um, trazia um amigo e por aí fora. Viviam todos juntos para poupar.
Vinham ainda miúdos ou já adultos?
Homens, depois da tropa. Alfama começou assim a entrar na identidade cultural da Pampilhosa. Nessa altura começam também a proliferar em Lisboa as casas concelhias. A da Pampilhosa é aqui em Alfama, na Rua das Escolas Gerais. Era onde os pampilhosenses se reuniam. Os bailes era muito famosos e era um ponto de destino familiar todos os anos.
Nasceu na Pampilhosa?
Já nasci em Lisboa. A minha mãe é de uma aldeia de Mangualde e o meu pai de uma aldeia na Pampilhosa da Serra. Conheceram-se aqui. A minha referência de Alfama na infância e adolescência eram basicamente as tais festas, que eu nem sequer gostava muito de frequentar. Tinha um certo pavor das multidões, ainda hoje tenho, e das poucas vezes que fui aos santos em Alfama nem tinha gostado.
Não gostava pela fobia ou por achar que era uma festa demasiado popular?
Não era por isso. Não perco uma festa do meu concelho. Durante muitos anos fui assinante do São Carlos, mas tanto posso entrar num sítio para ver um concerto de música clássica como ir ver o maior dos pimbas. Nunca tive uma ideia pejorativa do que se vivia aqui. Era mais por essa fobia e pelo desperdício de tempo. Passar uma noite de cima a baixo com um copo na mão não tinha graça. Nunca na minha vida pensei que alguma vez me fosse apaixonar pelas marchas. Via na televisão e achava aquilo uma seca. Ainda hoje acho.
Antes desse bichinho veio o Direito.
Sim, licenciei-me em 1984.
Já com a ideia de seguir estudos judiciários e vir a ser procurador?
Não. A ideia que eu tinha era arranjar trabalho. Acabei o curso em junho e faltava-me a cadeira de Teoria Geral do Direito Civil, à qual eu tinha chumbado 12 vezes. Tirei o curso na Clássica.
Com colegas hoje conhecidos?
Tive muitos, incluindo o primeiro-ministro. António Costa era meu colega da turma grande, depois tinha a turma A e a turma B. Não éramos amigos mas relacionávamo-nos. Fui aluno da Celeste Cardona, do Pedro Santana Lopes. Também sou do tempo de Paulo Portas em Direito, embora tivéssemos um ano de diferença e ele andasse na Católica.
Como era a vida de estudante?
Havia uma separação dos que estudavam Direito em Lisboa e dos de fora. Uma vez organizámos uma manifestação por causa da comida da cantina. Acabei por liderar a revolta com um grupo da Clássica e nunca sequer lá tinha entrado. Achava injusto eles pagarem um escudo e 50 centavos para comerem aquela porcaria, estavam sempre a queixar-se. Tínhamos aquela coisa de abraçar as causas.
O que dizia isso já da sua personalidade?
Acho que tem também a ver com a minha origem. Naquela zona toda, Pampilhosa, Góis, Arganil, apareceram a dada altura comissões de melhoramento, inseridas num movimento regionalista. As câmaras não tinham dinheiro, o país estava estruturado sobretudo para o Terreiro do Paço e as pessoas perceberam que unirem-se era a única forma de mudar alguma coisa.
Era um país ainda mais centralista?
Com mais diferenças ainda. A minha aldeia não tinha água, não tinha luz, não tinha esgoto. Quando ia lá passar férias não havia nada. Até aos 15 anos não tínhamos casa de banho.
Nem uma latrina no quintal?
Nada, íamos ao milheiral. Limpávamo-nos onde tínhamos de limpar. Não se ia ao médico. Uma vez, tinha oito ou nove anos, ia com o meu avô cortar um pinheiro que tinha sido atingido por um raio e cortei-me, deitei imenso sangue. Ele fumava um cigarro de onça e tirou um folhinha de enrolar tabaco para estancar o sangue. Era assim. Na altura ir-se a um hospital era impensável, ainda hoje é difícil. Mas esse espírito do coletivo começou aí.
Manifestou-se outras vezes?
Tive muitas cenas marcantes. Fui estrear o novo liceu da Amadora e fui colocado no 3.ºT, uma turma sobretudo de alunos repetentes. Era um menino e todos os demais eram uns matulões que se estavam a borrifar para a escola. Tinha uma professora de matemática que era a Maria Helena Caseiro, uma professora à antiga. Um dia ela entra na sala, passa-se com todos e pergunta quem é que se tinha portado mal – tínhamos todos. Diz que alguém tem de se acusar senão ficávamos de castigo e eu, feito parvo, acusei-me. Vou com ela ao reitor e fizeram-me de delegado de turma. Ela obrigava-me, num método fascista, a ficar na sala nos intervalos a pôr o nome dos 20 alunos no quadro. À medida que eles regressavam, entre o primeiro e o segundo toque, eu tinha de apagar os nomes dos que se portavam bem. Não havia como, porque ela entrava um minuto depois e havia sempre nomes que eu não podia apagar. Aquilo era um trauma.
Os outros gostavam de si ou era visto como o “favorito”?
Gostavam, mas foi porque eu a certa altura passei a escrever os nomes errados para depois não ser usado para os acusar. Fui delegado de turma até ao 5.º ano do liceu. Mais tarde no CEJ também fui nomeado delegado de turma do nada.
Sente-se um líder nato?
Não acho que seja, mas as pessoas confiam e gostam de ter alguém que não se importa de tratar das coisas chatas.
Voltando ao Direito. Já tinha ideia de fazer os estudos judiciários?
Não. Acabei por ir fazer os exames do Centro de Estudos Judiciários (CEJ) mais para me pôr à prova, meti aquilo na cabeça.
Mas não pensou na advocacia?
Não tive tempo… concorri aos exames na perspetiva de ver como aquilo era e surpresa das surpresas passei na prova escrita sem ter estudado um minuto.
Essas não são aquelas provas em que é preciso estudar a sério?
Calma. Não tive uma nota extraordinária, foi um aí um 9,5, mas dava para ir a oral. Quando me apercebo que vou à oral entro em pânico: estava ali de facto uma oportunidade porque entrar para o CEJ era difícil. Como o meu nome começa por J tive alguns dias para estudar e foi o que me valeu. O ideal é ter sempre o nome do meio. Foram 46 dias entre o momento em que soube a nota e a oral com o Laborinho Lúcio. Foram 46 dias em que não vi o sol, sempre a marrar. Fiz a oral e passei. E aí comecei a minha vida de cigano, de um lado para o outro…
Não equacionou ir para juiz?
Na altura, e hoje ainda é assim, quem escolhe ao princípio, independentemente da nota final, pode manter a escolha. Eu não escolhi, só optei no fim e não havia mais vaga. Mas abracei completamente.
A carreira de juiz não é mais prestigiante?
A judicatura exerce direito em nome do povo, que no fundo é quem lhe paga o ordenado, mas ainda há quem ache que por ser juiz é mais do que ser o que quer que seja… Costumo dizer que o 25 de abril não bateu a porta.
Será por os procuradores não terem mais meios para a investigação?
Têm os meios que têm para o país que somos. E um juiz também só julga aquilo que o procurador quer que ele julgue. O MP faz uma investigação, no final da investigação arquiva ou acusa. Arquivando, o juiz mesmo que não concorde não pode fazer nada. É claro que depois na decisão final é o juiz a decidir, mas isto é tudo normal, não me sinto diminuído.
Onde começou?
A minha primeira comarca foi Paços de Ferreira. Estive lá um ano.
Que processos dominavam?
Bagatelas penais, algumas histórias muito engraçadas de injúrias por tudo e por nada, o que era difícil porque no Norte as pessoas têm aquele palavreado. Era muito engraçado porque trabalhava com o juiz Rui Pinto Ferreira, um homem de imenso humor que deixava escapar palavras muito piores do que aquelas que as pessoas diziam umas às outras, mas fazia aquilo com a naturalidade de homem do Norte. Depois fui destacado para Paredes de Coura, onde estive quatro horas. Percebi que às quartas-feiras as audiências de julgamento iam ser na minha sala de jantar… Pedi para ir para Barcelos.
Havia diferenças no tipo de processo?
Havia mais questões comerciais. Tive um processo de tráfico de droga que me marcou muito numa aldeia num lugar recôndito, de uma senhora que não fazia ideia do que era droga mas vendia para sustentar o vício dos filhos. Foi condenada. Na altura as penas por tráfico de drogas eram muito pesadas. Lembro-me de apanhar julgamentos em que as pessoas por sete ou oito gramas de heroína apanhavam cinco e seis anos de pena efetiva e hoje se calhar com cinco ou seis quilos não se apanha isso.
E depois de Barcelos?
Foi mais uma loucura. Tinha dois amigos que tinham sido colocados nos Açores e andaram o ano inteiro a chatear-me para eu ir para lá. Acabei por concorrer para São Miguel. Quando o meu requerimento chegou ao conselho ligaram a perguntar-me se me tinha enganado: nunca ninguém tinha querido ir para os Açores.
Não tinha nada que o prendesse? Nunca constituiu família?
Nunca assentei. Quis ir e fui. Acontece que quando finalmente fui mandado para lá os meus amigos vieram embora, à exceção de uma colega, a Magui. Gostei imenso de estar nos Açores.
Não teve o síndrome da insularidade?
De todo. Passado dois meses era vice-presidente do Clube Operário Desportivo, que nessa altura tinha um jogador que depois veio a ser uma estrela que é o Pauleta. Portanto fui diretor do Pauleta. [risos] Estávamos nos distritais e subimos aos nacionais, onde ainda estão.
É bom um magistrado ter essa relação de proximidade com a comunidade?
Eu acho que sim, tenho colegas que não acham.
Mas imagine que um amigo ou colega é apanhado num esquema…
Paciência. Isso aconteceu-me quando já estava de novo em Lisboa, no Tribunal da Boa Hora. Entrei na sala sem saber sequer o nome da pessoa e quando me sentei vi à minha frente um dos meus melhores amigos de infância. Caiu-me tudo, mas não havia razão para não fazer o julgamento.
Não pode apresentar objeção de consciência?
É impossível. Um magistrado não pode ter objeção de consciência se não está a revelar que é influenciável. Há alturas de lei em que isso é possível, se a pessoa for o meu pai, um filho, o cônjuge. Mas tudo o mais não.
Como correu esse caso?
Ele foi condenado e deixou de me falar. Era um caso de tráfico de droga. Depois de o acusar fui vê-lo à cadeia e expliquei-lhe que não podia ser de outra forma: a prova era aquela e tive de contribuir para a condenação. Depois ficámos bem. Cresci na Damaia. O meu pai dizia que eu andei sempre no limite da vida boa e de ser um moinas. Tive vários amigos presos. Com 15 e 16 anos combinavam as coisas à minha frente e depois diziam: esta noite não podes sair connosco. Eu sabia logo que ia haver problema.
Ter conhecido esse ambiente fez de si melhor magistrado?
Fez-me conhecer a vida. Mas na altura era um bocado frustrante. Havia um café na Damaia que era o D. João V. O bairro era mau. A polícia chegava às 10 da noite, entrava pelo café a dentro e montava muita gente na ramona. Eu sentia-me frustrado porque a mim nunca me levavam, também queria ter essa experiencia.
De ser bandido?
Não era ser bandido, era passar por aquilo. Muitos deles também nunca foram bandidos, andávamos por ali. Íamos para as discotecas, na altura em que as discotecas fechavam às 2 da manhã. No regresso apanhávamos o comboio das 2h40, o comboio ia como se fossem 9 da manhã. Quando chegava à Damaia de madrugada havia ali um ambiente sui generis mas comigo nunca se meteram. Eu era um deles.
De São Miguel regressa então a Lisboa.
Sim, fui para a Boa Hora, estive lá nove ou dez anos. Saí para o DIAP de Lisboa. Depois fui promovido a Procurador da Republica e fui para Vila Franca. Recebi depois o convite para ir para o DCIAP, onde estive 12 anos com a dra. Cândida Almeida.
E com Carlos Alexandre?
Sim. Tinha sido meu colega de curso e acabámos a trabalhar os dois em vários processos.
Como é o super-juiz?
É uma super-pessoa, um homem espetacular. Se todos os magistrados fossem da índole do Carlos Alexandre a justiça estaria muito melhor. Acho que ele consegue trabalhar até quando dorme. É um homem que domina todas as matérias e todos os processos como nenhum outro.
Saiu agora um livro sobre ele e as autoras dizem que a pressão o tornou cauteloso, um bocado paranoico.
Ele consegue ser independente e isento e tem noção do que isso implica. Essa história de que ele se cola muitas vezes ao MP é uma mentira, porque a maioria das decisões dele são confirmadas na Relação. Muitas vezes estávamos a fazer interrogatórios com pessoas que tinham praticado os crimes pelos quais estavam a responder mas tínhamos noção que não tínhamos prova bastante e as pessoas gozavam com a nossa cara. Ele percebia isso e entrava nesse jogo. É um homem que tem uma interpretação muito estrita da legalidade e tenho confiança total nele. Se porventura tivesse um telhadinho de vidro que fosse, com todos os processos que já teve, já o tinham partido. É escusado, não conseguem encontrar nada. Quando a dra. Cândida Almeida sai do DCIAP, como tinha sido ela a convidar-me, achei que também estava na altura de sair. Foram 12 anos de processos horríveis, do processo dos submarinos a outros.
No processo dos submarinos um dos nomes falados chegou a ser o de Paulo Portas. Conhecendo-o dos tempos de Direito, não houve nenhum contacto?
As pessoas diziam que tinha Paulo Portas. Ele nunca foi arguido. Mas jamais. Encontrei-o uma vez aqui em Alfama, ele já era vice-primeiro ministro, teve a amabilidade de me cumprimentar mas ficou por ali a conversa. E houve duas ou três vezes que nos encontrámos institucionalmente e nunca se falou de nada disso. Aliás, devo dizer que nunca senti pressão nenhuma de ninguém. Acho que as pessoas se calhar perceberam que não valeria a pena, nem que fosse o meu pai.
Não há essa tentativa de sacar informações, mesmo de amigos?
Ao início quando estava em Barcelos era muito novo e havia muitos advogados novos com os quais eu comecei a ter alguma empatia e saímos muito para as discotecas. Não perdia uma. Mas nunca ninguém me tentou pedir nada.
Sai do DCIAP e vai para onde?
Para Cascais.
Não é uma despromoção sair do DCIAP e regressar a uma comarca?
Isso é quando a pessoa acha que o DCIAP é o topo de qualquer coisa e eu não vejo assim.
Mas não é essa a perceção geral?
É um bocado. Há magistrados que acham que pelo facto de estarem no DCIAP têm o know-how todo. Há uns que têm e outros não, como tudo na vida. Há os bons e os maus. Enquanto lá estive ouvi colegas tecerem comentários pouco interessantes sobre os magistrados do DCIAP e estão lá agora… Mudaram de opinião, o que é bom na vida.
Quer falar de nomes?
(risos). Eles sabem. Mas é bom mudar de opinião.
Como correu em Cascais?
Fui para o Tribunal de Família, área em que não tinha muita experiência. Vi casos de bullying motivados pelas diferenças sociais. Roubo de telemóveis, roubo de livros à porta da escola, gozarem com um miúdo por não ter roupa de marca. Era o dia a dia. E com paizinhos a acharem que os meninos têm razão. Havia também algumas agressões a professores.
Nas escolas más ou nas boas?
Era mais difícil nas escolas ditas boas, mas acontecia. Li há uns tempos um artigo espetacular do Ricardo Araújo Pereira que falava sobre a vida dos professore, de um lado para o outro, com problemas na sala e pais a pedir justificações. A solução, dizia ele, era arranjar um cigano para cada escola como diretor de turma. Foi isso que senti em Cascais. Entretanto houve a reforma judiciária e foram criadas 23 zonas e em cada uma houve necessidade de nomear um coordenador. Era preciso ter nota de mérito e 15 anos com essa nota. Tinha essa avaliação, fiz esse curso para coordenador e concorri para vários sítios. Entretanto morreu-me o meu pai. Tínhamos uma relação próxima e eu precisava de fazer o luto à minha maneira. Achei que fazer o luto era ir viver para perto do sítio onde ele cresceu, para a aldeia onde foi enterrado. E fui para o Carvalho. Comigo somos 36 habitantes.
Como era essa relação?
É engraçado porque a noção disto surgiu-me depois de o perder. Ele era de uma rigidez tal que nunca me bateu, bastava abrir os olhos. Mas não sei, é aquela sensação de que, de repente, aquelas referências básicas da nossa vida desaparecem. Era um homem de muitos valores que eu acabei por interiorizar. Com uma única diferença: o meu pai era um homem que se alguém lhe fazia mal ele engolia. Eu não me calo, não engulo sapos. Íamos muito ao futebol, éramos os dois do Sporting. Podíamos marcar ou perder por dez golos que ele não se manifestava. Às vezes dizia-me: “Tens de te gravar, não és o mesmo João”. Mas o futebol é outra paixão… dos 18 aos 24 anos cheguei a ser árbitro.
Já dava para escrever um livro.
Se dava. Uma vez ali no Fófó (Clube Futebol Benfica) houve um jogo com os barcelenses. Quem ganhasse dos dois subia. Era o último jogo da última jornada e a dois ou três minutos do fim apitei um penálti contra o Fófó. Estiveram um quarto de hora para poder marcar o penálti, uma tensão imensa. Se tivesse sido esperto tinha acabado o jogo aos 90 minutos. Quis deus que falhassem o pénalti. Depois já era o herói. Tive a ideia de que, se tivesse sido ao contrário, não saía de lá vivo.
Mas então, em homenagem ao seu pai, vai para a comarca de Castelo Branco. Como foi deixar Lisboa?
Os meus amigos ainda hoje acham que sou doido. As pessoas de lá ficaram todas admiradas. Acharam que eu era um beto.
Ou então que ia fazer a revolução.
Sim, uma coisa ou outra. Mas estou lá há três anos e fiz grandes amigos.
Quando se meteu nas marchas estava onde?
No DCIAP. Estávamos em 2002, eu telefonei para um amigo que conhece toda a gente e ele telefonou para o Carlos Mendonça, o homem das marchas, pessoa com quem eu nunca tinha falado.
Mas sabia quem era ou não?
Nada.
Então de onde é que isso saiu?
Um dia estava a ver qualquer coisa sobre as marchas na televisão e meti na cabeça que ia fazer aquilo. Eu normalmente nem via as marchas mas naquele ano chamou-me a atenção um programa e quis saber mais. O Manel falou-me do Carlos Mendonça que era de Alfama e eu pensei ‘perfeito’, porque nessa altura estava a morar na rua de são Mamede ao Caldas. Mas vivia em Alfama sem ter noção do que era pertencer a Alfama.
O que disseram os seus colegas?
Ao princípio não queriam acreditar, “é mais uma loucura deste gajo”. Foi um desafio. Não conhecia ninguém. Quando entrei aqui pela primeira vez estava aquele homem e o irmão, que era o Zé Júlio. Ninguém me conhecia e eu não conhecia ninguém. Eu era o juiz…
Mas as pessoas tinham essa referência?
Sabiam que ia lá um gajo que trabalha na justiça, o que bastou para ficarem apreensivas. Isto porque entretanto eu tinha ligado ao Carlos Mendonça e ele tinha-me dito que não sabia se me podia arranjar lugar porque tinha a marcha completa. Mas mandou-me ir lá. Isto foi aí em abril ou maio de 2002, os ensaios já tinham começado. Não é costume mas naquele dia cheguei atrasado. Quando chego à porta estavam os 50 marchantes prontos para arrancar e o Carlos Mendonça diz-me: “você é o João Ramos?” Eu respondi que sim. E ele do nada vira-se diz: “Ó Bruno, estás fora da marcha”. Fiquei sem saber onde me meter.
Não deve ter caído bem.
O Bruno era do bairro. O que me disseram depois foi que acharam que havia ali um cambalacho. Fazendo de uma história comprida uma história curta, cinco ou seis dias depois, num intervalo, sentei-me num banco onde estavam sete pessoas e todas se levantaram. Passado um ano, em 2003, houve eleições no Magalhães Lima e eu fui eleito presidente.
E o Bruno?
O Bruno voltou a conseguir entrar.
Mas qual tinha sido o critério?
O critério era a disciplina. O Bruno tinha faltado a um ensaio e não tinha avisado.
Continua a haver essa exigência?
Sempre. A partir de 25 de abril os ensaios são todas as noites de segunda a sexta, das 21h30 e às 23h e ninguém pode faltar.
E conseguia chegar a horas?
Conseguia. Não me lembro de ter faltado. Mas eu só fui marchante nesse ano. Fui ao Pavilhão Atlântico e há uma marcação em que é suposto toda a gente ajoelhar-se e eu fiquei em pé. A minha mãe perguntou-me: “Porque é que toda a gente se ajoelhou se era para ficar em pé como tu ficaste?” A conclusão a que cheguei era que não servia para marchar. Ficámos em quinto. Desde que sou coordenador tenho nove primeiros e seis segundos.
Mas nessa primeira edição, como reagiram os seus colegas e amigos?
As pessoas habituaram-se. Este ano num ensaio até tive cá a Procuradora Geral da República. Ela tinha ido fazer uma visita de trabalho a Castelo Branco e eu disse-lhe que vinha todos os dias à noite para os ensaios. Ficou curiosa.
Mas veio todos os dias?
Este ano não vim mas no ano passado sim. Saía de Castelo Branco às 18h30, chegava às 21h15, assistia aos ensaios, ia para cima à meia noite, deitava-me às duas e meia e levantava-me às 7 menos um quarto. É uma loucura. Este ano não consegui, por razões físicas. Mas vim duas vezes por semana.
E trabalhou dia 13?
Pus o dia 13, antevendo que podíamos ganhar (risos). Mas fui trabalhar no dia 14 e toda a gente manda mensagem, alguns com as bocas do costume, que isto está tudo comprado. Todos os anos os jurados mudam, não os conheço. Enquanto acharem que é por aí nós vamos continuar a ganhar. Há seis ou sete marchas que percebem porque é que ganhamos: são as que competem connosco.
Mas qual é a explicação?
O rigor, a aposta na qualidade e encararmos isto com uma coisa séria. Se eu tenho 30 mil euros gasto-os na marcha, não os uso para fazer face a outras despesas da coletividade. Há marchas que oito dias antes de irem ao pavilhão não têm ainda os 50 marchantes completos. Se nós aqui desde o início dos ensaios temos cá 50 pessoas todos os dias, como é que uma marcha que não faz isso pode ousar pensar que o resultado é o mesmo?
Há muita intriga nos bastidores? Houve o caso do figurinista Joaquim Guerreiro que em tempos não entregou os fatos e ficou com o dinheiro.
Foi um homem que também passou por Alfama mas nós não tivemos desvio de dinheiro. Tivemos uma cena em 2015 em que, a seis horas de ir para o pavilhão, não estava nada pronto para a marcha… Esse homem em termos de trabalho é brilhante. Depois há essa intriga de acharem que os jurados são comprados… é um caminho que nem percorro.
Gere 50 marchantes. Também ganhou mundo no Magalhães Lima?
Sim. O que as pessoas fazem fora do Magalhães a mim não me interessa nada. Tenho pessoas de diferentes níveis, de diferentes profissões, pessoas que até já tiveram em algum momento da sua vida problemas com a justiça. Mas daquela porta para dentro são pessoas que fazem parte de um coletivo a que eu pertenço.
Ao início não o tratavam com deferência, por sr. procurador?
Não, só por gozo. Mas nunca deixei de ajudar se me pedem um conselho nessa área. Isso acaba por ser inevitável. Ainda há pouco tempo um amigo meu ligou às sete e tal da tarde de um domingo e eu disse logo: foste apanhado com álcool. É matemático. Se nunca liga, havia de haver problema. E eu explico o que vai acontecer. “O juiz não pode tirar a carta porque faz falta”, dizia ele. Só faz sentido tirar a carta porque faz falta.
Este ano o tema foi “Não toquem na minha Alfama”. Como vê o bairro?
Com preocupação. A grande parte das pessoas de Alfama que costumavam ir connosco ao pavilhão ou esperar por nós este ano não estavam, já cá não moram. Há uma lei estúpida que não lhes permite renovar as rendas e não conseguem suportar o que lhes pedem. Subimos a R. dos Remédios só com turistas.
Que vos acham graça.
Sim, mas não é a mesma empatia.
Mas o turismo dá trabalho no bairro.
Para a economia local é bom, mas como um dia alguém disse do défice, tem de haver vida para além do turismo. Não somos contra os turistas, fazem falta, mas o peso de ter turismo não pode ter uma repercussão de tal ordem que as classes mais desfavorecidas não tenham capacidade de ficar nas suas casas. Não estou a falar de um jovem que tem de sair. Há casos de pessoas com 70 e tal anos, que ficam viúvos e não conseguem renovar os contratos de arrendamento e vão embora de um sítio onde sempre viveram para ficarem completamente desenraizados.
Quem teve a ideia do tema?
Fui eu. Como não consigo estar parado, um dia em outubro estava lá em cima na aldeia e ao fim de semana não há nada para fazer e pus a pensar nisso…
Acho difícil que estivesse parado…
É sempre um bocado mais parado, depois vem o frio… Mas agora meti-me noutra coisa. Fui um dia a um baile dos bombeiros, uma amiga minha insistiu, e quando cheguei lá achei que estavam poucos bombeiros e não havia ninguém da direção. Perguntei o que se passava, disseram-me que havia um desentendimento. Isto foi em setembro. Dia 28 de outubro fui eleito presidente da direção dos bombeiros da Pampilhosa.
Como gere tudo? Não dorme?
Durmo pouco, é verdade. Ligou-me agora o presidente da câmara a dizer “és como a Constança, não perdes festança”.
Não o assusta deixar de ter esse ritmo?
Pois. Se calhar é assim para pensar que isso não vai acontecer. A grande vantagem que tenho, e hoje já não a vou perder é que posso estar na cama e se me passa pela cabeça levantar e ir a qualquer sítio vou. Ninguém consegue fazer isto casado. Acho que este conceito tão amplo de liberdade que tenho não poderia tê-lo de outra forma. Se calhar aos 30 anos ainda podia pôr os pratos na balança, pesar o que ganhava com a estabilidade. Mas aos 58 anos a estabilidade que eu vejo é o Alto de São João mais perto.
É mais feliz em Alfama, de beca no tribunal, na aldeia?
Sou mais feliz na aldeia. Já não estou de beca porque estou na coordenação, estou naquela parte chata de andar a fiscalizar a vida dos outros. Quando estou na terra, uma tarde inteira a jogar a sueca…
Mas perdeu o encanto pela justiça?
Nunca tive. A justiça é sempre o resultado daquilo que acontece em determinado contexto e daquilo que se demonstra em determinado contexto.
Não é um valor absoluto.
É uma aplicação do direito e o direito de hoje é um direito distinto do de amanhã. Daqui a 200 anos vão gozar connosco por pormos pessoas na cadeia e hoje achamos que é o que tem de ser.
É uma forma primitiva?
É uma forma muito fácil de resolver o problema. Vais para a cadeia e não chateias. Mas daqui a uns séculos vai ser diferente. Como há 300 anos as pessoas eram torturadas e as pessoas achavam normal.
Já tem tema da marcha para 2018?
Já mas não digo. Falamos em abril… Às vezes começa a não ser fácil. Há dois anos levávamos um tema que era girassol de Alfama, queria dizer gira o sol de Alfama, tinha a ver com a luz de Lisboa. Vieram dizer que não há girassóis…
É o João que escreve?
Sim, com o Ricardo Dias. As letras e as músicas – e não sou capaz de distinguir um sol de um fá. Canto para o telemóvel e depois levo para o Carlos Dionísio compor, claro.
É uma personagem caricata…
Sou um gajo raro. E geralmente estas coisas dão-me à noite. Esta música deste ano diz “não me importa…”. Tinha combinado com o Carlos Dionísio vir a Lisboa trazer-lhe a música. O refrão era outro. E ele liga-me a dizer: “importas-te de em vez de ser uma coisa rápida ficares para almoçar” e eu respondi “não me importo”. Depois de desligar comecei a cantar. Surge no momento. Ando sempre com o telemóvel. Às vezes faço figura de tolo porque paro e começo a trautear.
Que imagem mais marcante tem em Alfama?
A morte do José Júlio, que era o pai da ensaiadora. Morreu no dia 12 de junho de há sete anos. Estávamos todos preparados para sair para a avenida quando recebemos um telefonema a dizer que ele ia morrer. Estava internado com cancro. Saí com a Vanessa e o irmão e quando chegámos ao Hospital dos Capuchos já era tarde. Senti-me impotente e perguntei à Vanessa o que fazíamos. Ela respondeu: “Agora vamos desfilar”. E foi desfilar com o pai morto. Ganhámos. O dia de que ele mais gostava na vida foi o dia em que morreu. A vida às vezes é um bocado ingrata. Sei que Deus lá está e terá a sua hora, a hora dele nunca é a nossa mas às vezes podia atrasar o relógio. Mais seis horas e tínhamos-lhe dado essa satisfação.
E o seu verso mais inspirado?
Este ano a letra da música é a minha vida. Diz ninguém te ama como eu. E há outra parte: eras minha e eu não sabia e eu vivia aqui tão perto. Que é a minha história com Alfama. Hoje não vivo sem isto e é estúpido que tantos anos estava aqui tão perto e não via. E isto acontece com tudo na vida. Às vezes a nossa cara metade anda aqui tão perto e nós não vemos e um dia há um clique.
Como viveu os dias de fogo em Pedrógão e depois na Pampilhosa?
Passei noites sem dormir. A minha tarefa era fazer chegar comida aos bombeiros num dos pontos. Deparei-me com bombeiros exaustos, sem forças e que apesar rendidos queriam continuar.
A sua aldeia foi afetada?
O fogo parou à minha porta em Carvalho. Dois terços da parte envolvente ardeu. Salvaram-se as casas. Assisti à chegada do fogo a duas aldeias, Amoreira e Pessegueiro, e na primeira vez julguei que toda a gente fosse morrer. Na Amoreira, a perceção que tive foi de chamas descontroladas a passar por tudo o que era rua e beco. Em Pessegueiro, tivemos de fugir e refugiarmo-nos porque houve uma altura em que o fogo se dirigia a nós com uma velocidade tal que se não o tivéssemos feito não sei o que acontecia.
Discutem-se falhas e responsáveis. Que leitura faz?
Independentemente de terem falhado algumas coisas, a verdade é que num fogo transdistrital e que afeta uma extensão de terreno tão grande não há, num primeiro momento, capacidade de resposta. Nem que vivessem aqui milhares de pessoas. Quando as pessoas dizem que no momento de maior aflição não viram bombeiros, não viram porque não há. Na Pampilhosa, num total de 80 bombeiros, dois terços são voluntários. Têm de ser chamados e alguns não podem porque estão no trabalho. Mesmo que se toque a sirene três e quatro vezes eles não a ouvem porque não trabalham ali mas em Coimbra. E depois, dos bombeiros que estão ao serviço, alguns também não podem ir porque têm serviços urgentes, uma ida à hemodiálise, transporte de doentes. As pessoas apercebem-se da falta de recursos nestas alturas mas não têm noção. Há momentos no concelho em que não existe ambulância.
Estando aí, o que sente que podia mudar?
Tenho pouca experiência disto mas o que sinto é que num fogo assim não pode haver um comando num lado e outro noutro e as pessoas dos concelhos têm de ter um papel. Vi situações em que se o comando estivesse nas mãos do nosso comandante da corporação a situação teria sido resolvida mais depressa. Nasceu ali, conhece todos os caminhos. Claro que é preciso haver comando se não seria o caos, mas estes minutos que pode demorar a tomada de decisão pode fazer toda a diferença e em alguns casos fez. Isto sem prejuízo de ser impossível chegar a todos os lados. Penso que houve sobretudo falta de meios tendo em conta a dimensão da catástrofe e tenho um pouco receio de que mesmo que fossem 100 vezes mais não fosse suficiente. A não ser num cenário irrealista, se esses meios todos que combateram o fogo a partir de quarta-feira pudessem estar no local no início. Não há adivinhos, por mais alertas que haja de risco de fogo e mapas de zonas de risco. O vento é que mandou. Quando a natureza entendeu que chegava parou.