A história de pasmar de Brasilino, doutor aos 85

A história de pasmar de Brasilino, doutor aos 85


Hoje, Brasilino Godinho, 85 anos, deve tornar-se doutor pela Universidade de Aveiro. A defesa da tese está marcada para as 14h30 e o doutorando, que iniciou o percurso académico aos 77 anos, não descarta a hipótese de ir recitar versos de Almeida Garrett à beira da Ria depois da prova


Em Aveiro, um jornal regional já chamou a Brasilino Godinho “topógrafo das letras”. Do ofício que desempenhou durante uma vida – a topografia – à entrada na Academia, pela qual cumpre hoje o doutoramento, passou quase outra. É que Brasilino – nome com cheiro ao outro lado do Atlântico mas que afinal nasceu na margem do Nabão, em Tomar – entrou para se licenciar em Línguas, Literaturas e Culturas da Universidade de Aveiro a um mês de completar os 77 anos e hoje, com 85 primaveras a florir no cartão de cidadão, defende a tese de Doutoramento em Estudos Culturais sobre Antero de Quental. É às 14h30, na Sala de Atos Académicos da Reitoria da Universidade de Aveiro, que presta provas. O fim de mais um ciclo que, promete, não será o derradeiro: “Quero fazer um pós-doutoramento”.

Voltemos ao início, um sítio bom para começar e, neste caso, imprescindível para perceber a fibra deste desígnio. Ainda em Tomar, um Brasilino muito jovem acabara de tirar o curso de serralharia mecânica – hoje, seria chamado de curso profissional –, em 1947. Aos 15 anos já tinha lido Platão, Russel e Kant mas queria continuar a estudar na área na qual dera os primeiros passos, pelo que pediu ao avô, um “industrial remediado”, que lhe pagasse o curso no Instituto Superior Técnico, em Lisboa. Queria ser engenheiro. Levou uma nega e recebeu uma bicicleta para ir para o trabalho.

O não, reconheceu em entrevista ao jornal online da Universidade de Aveiro, custou-lhe. Mas também foi a negativa que lhe redobrou as forças. “Foi este ‘não’ que me fez ser quem sou”, contou.

E quem foi, então? Um homem que, durante a sua vida profissional, não foi só desenhador – percurso que iniciou em Tomar –, mas também topógrafo e ‘engenheiro’ sem canudo pelo país fora. Nunca deixou de aprender por si só. E a vida correu 61 anos.

2008 Chegámos a 2008 e ao ano em que Brasilino, viúvo há três meses, volta a entrar numa sala de aulas – candidatou-se através do programa ‘Maiores de 23’ com média de 17.

Desta feita, não escolheu a área das ciências, até porque o gosto pelas letras era um campo que tinha alimentando paulatinamente nas tais seis décadas de, chamemos-lhe assim, hiato – já escreveu três livros, dois deles de poesia, e é cronista conhecido da imprensa regional. E tem um blogue: o “Quinta Lusitana”. Ao mesmo jornal, o estudante resumiu com um sorriso o primeiro dia: “Foi extraordinário”. Fez questão de fazer o que podia para minimizar o embate geracional – logo no primeiro dia, “disse aos colegas que não queria um tratamento diferente”. E, como resultado da exigência, ou talvez não, diz que encontrou “um clima de harmonia espantoso” dentro da universidade.

À data da matrícula, Brasilino ainda pensou em concluir o curso às escondidas dos filhos e netos, mas foi ‘descoberto’ em plena universidade. Terminou a licenciatura em 2012, com média de 15 valores mas, ao mesmo jornal, conta que fez muitas horas extras em casa além do tempo ordinário das aulas, já que um problema de audição o impedia de captar tudo o que era dito dentro da sala de aula. Não é da audição que Brasilino fala quando pensa em maleitas, mas sim de uma condição sui generis: um “sistemático ardor juvenil”.

E o ardor fê-lo continuar a subir a escada do doutoramento.

2017 Ontem, foi impossível falar com Brasilino que, conta quem o conhece, “é muito célere a responder a emails” e que as redes digitais fazem parte da sua rotina. Um telefonema para a Universidade de Aveiro e a resposta ao silêncio pouco usual nele chegou, pronta: o doutorando estava ocupado a testar a sala onde hoje defende a tese intitulada ‘Antero de Quental: um Patriotismo Prospectivo no Porvir de Portugal’.

Contudo, no perfil que mantém no Facebook, avisou, na semana passada, qual era “o dia e a hora D do desejado ato académico”. “Quero lembrar a todos, seres dos dois géneros, quantos foram (e continuam sendo) os meus estimados professores, os atenciosos colegas, os sinceros amigos, os dedicados leitores, e os desagradáveis amigos da onça, que na próxima quarta-feira, dia 05 de Julho de 2017 – e sem que seja precedido de qualquer manifestação a fazer lembrar cortejo de trombeteiros empertigados tocando trombetas, saudando a chegada de Nau Catrineta, ao Terreiro do Paço, na alfacinha capital deste reino entregue à bicharada e onde ocorrem muitos devastadores fogos e maléficos artifícios – estarei entrando simplesmente, embora trajando a rigor académico, pelas 14h30, na Sala de Atos Académicos, sita na Reitoria da Universidade de Aveiro, para prestar provas de Doutoramento em Estudos Culturais”, escreveu o aluno.

E deixou uma nota marginal com uma quase promessa sobre o que pode acontecer após a defesa: “Por falar em Nau Catrineta nunca se sabe o que de imprevisível pode acontecer (…).Pela minha parte, optimista que sou, admito que no final do meu acto académico apareça na Rua da Pega, à margem da Ria, um qualquer pescador de águas turvas, da Borda d’Água, a gritar:“Lá vem a Nau Catrineta, que tem muito que contar! Ouvide, agora, senhores, Uma história de pasmar.”

De pasmar.