1. Ciclicamente, as crises humanitárias encarregam-se de nos lembrar de como essa entidade abstrata a que se chama comunidade internacional funciona. Mal.
Há décadas que o Sudão está sob escrutínio. Inevitabilidade que tem muitas razões. Guerra, atrocidades, milícias, violações, crianças-soldados, fome. A divisão do país em dois não pôs fim ao horror. Conto-vos uma história que merece ser mais do que uma nota de rodapé num relatório. É muito mais do que a sanidade é capaz de suportar. “Um homem encostou-me a arma à nuca e disse: ‘Vê como vamos violar a tua filha.’ Fizeram–me sentar no chão à distancia de talvez um metro do local onde a violaram e bateram-me repetidamente com um pau. Quando acabaram, violaram a minha filha mais velha e, em seguida, queimaram o nosso tukul. Depois arrastaram- -na, seguraram-na e mergulharam-na no fogo. Quando ela começou a arder, deixaram-na em paz. Ela ficou demasiado ferida. Tivemos de a deixar para trás quando fugimos.” Falar de refugiados sul-sudaneses é falar destas histórias e de fragilidades expostas. O país mais novo do mundo é, depois da Síria e do Afeganistão, o país com maior número de deslocados internos e refugiados. Uma das maiores crises em 2016 deixou de ser a Síria, que entrou no sexto ano de conflito, passando a ser o Sudão do Sul.
2. A organização não governamental Save the Children fez algumas contas e concluiu que seriam necessários 132 milhões de dólares por ano, durante três anos e meio, para que todas as crianças refugiadas sul-sudanesas a viver no Uganda, cerca de meio milhão, pudessem frequentar a escola pré-primária, a primária e o ensino secundário. O que dá 152 dólares por aluno, anualmente, e menos de 3 dólares por semana. Três quartos das crianças sul-sudanesas, no país ou refugiadas, não frequentam a escola, o que representa a taxa de não escolarização mais elevada do mundo. A título de comparação, a cimeira do G20 – onde também se discutirá o futuro do continente africano –, que terá lugar em Hamburgo, custará 130 milhões de euros, numa estimativa por baixo.
O que faz impressão é constatar que até existe verba para a educação destas crianças. O dinheiro disponibilizado pela Global Partnership for Education para o Sudão do Sul não está ser gasto. O que não causa surpresa, porque há meio milhão de crianças sul-sudanesas em idade escolar no Uganda e outro meio milhão noutros países vizinhos. As práticas administrativas instaladas do Banco Mundial não permitem, em circunstâncias normais, transferências de verbas transfronteiriças. O que se vive no Sudão do Sul é tudo menos normal. País novo, velhos hábitos.
De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, dos 1,4 mil milhões de dólares prometidos pelos doadores até ao final de 2017, para ajuda a população em fuga ou refugiada, apenas 649 milhões de dólares foram pagos.
Nas sociedades confortáveis, o inferno são sempre os outros e é sempre dos outros. Podemos escrever milhares de carateres sobre vítimas e torcionários e não continuaremos nem de perto a perceber a infinita tragédia das gentes sem importância dos países mais-do-imperfeitos.
Escreve à segunda-feira