Sophia, um nome que guarda em si mesmo toda uma vida e um exemplo

Sophia, um nome que guarda em si mesmo toda uma vida e um exemplo


Morreu a 2 de julho de 2004, há 13 anos, Sophia de Mello Breyner Andresen, alguém que fez da poesia uma forma de vida ou «a forma da vida» e da essencialidade uma busca sem limites, fundindo ética e estética, harmoniosamente conjugadas com os valores do humanismo cristão. 


Fez da poesia uma forma de vida ou «a forma da vida» e da essencialidade uma busca sem limites, fundindo ética e estética, harmoniosamente conjugadas com os valores do humanismo cristão. Cúmplice do real que sempre perseguiu, opôs-se aos «vendilhões do templo»; apontou o dedo às pessoas sensíveis (as que «não são capazes/ De matar galinhas/ Porém são capazes/ De comer galinhas»); censurou, «com fúria e raiva», os demagogos, espécie de capitalistas das palavras, um bem sacral que o classicismo da sua gramática ordenou com o pudor do excesso.

Senhora de um agudo sentido de justiça, uma aspiração não negociável, como modelarmente testemunha o livro Contos Exemplares (1962), Sophia de Mello Breyner é uma das vozes mais claramente densas, quanto discretas, da história da poesia portuguesa. Verticalidade, inteireza, harmonia, claridade, magia, escuta são palavras que logo ocorrem quando pronunciamos o nome de Sophia, que também concentrou a sua atenção no teatro (O Bojador, O Colar, Medeia, Recriação poética da tragédia de Eurípides), no ensaio e na tradução, com belíssimas versões de textos de Eurípides, Shakespeare, Claudel e Dante.

Confiava no poder dos nomes e na força de nomear, mas rejeitou a predestinação do seu nome, associando-o a uma arbitrariedade do registo de nascimento. Certo é que a autora de O Nome das Coisas (1977) cedo respondeu à chamada da poesia, sentida, logo na adolescência, como uma necessidade íntima: «É-me necessário fazer versos, é-me vedado saber porquê».

Avessa à apresentação de cartões de identidade pessoal, a confessionalismos fúteis, à linguagem do adorno (e a condecorações), Sophia – um nome suficientemente evocativo para guardar em si mesmo toda uma vida – sempre preferiu fundir-se com os elementos primordiais, interiorizando o mundo que buscou e procurou elevar acima das contingências, da mesquinhez e do baixo interesse: «A terra, o sol, o vento, o mar/ São a minha biografia e são meu rosto/ Por isso não me peçam cartão de identidade/ Pois nenhum outro senão o mundo tenho».

Da infância aristocrática passada no Porto, sua cidade berço, retém a sua obra poética e ficcional vivências de intensidade variável, momentos de confronto afectuoso com os seres e as coisas, ensinamentos incomunicáveis, lugares marcantes como a quinta da família, no Campo Alegre, onde hoje se encontra instalado o Jardim Botânico, mas também a praia da Granja, que lhe despertou a paixão pelo mar. Nos seus fluxos e refluxos, o mar, lugar de inteireza e via de encontro, marcou intensamente a sua produção literária, em verso e em prosa, nela ocupando um lugar central como demonstram os títulos Dia do Mar (1947), Coral (1950), Mar Novo (1958), Navegações (1983), Ilhas (1989), Búzio de Cós e outros poemas (1997), Histórias da Terra e do Mar (contos, 1984), A Menina do Mar (1958), este último um clássico da literatura para crianças e jovens que, juntamente com A Fada Oriana (1958) ou O Cavaleiro da Dinamarca (1964), começou por destinar aos seus filhos.

A frequência do curso de Filologia Clássica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, que decidiu abandonar em 1939, proporcionou-lhe um primeiro contacto com a civilização grega, que depois aprofundou, com olhar admirativo, nas sucessivas viagens feitas à Grécia, ao longo da vida. O fascínio pela Hélade e a sua cultura (autores, figuras históricas e mitológicas, lugares…) reflecte-se abundantemente nos seus poemas, que ora optam pela glosa de motivos helénicos, ora pela alusão fugidia.

Nos começos do seu itinerário poético – iniciado com o volume Poesia (1944) – Sophia deixou o seu nome ligado à revista Cadernos de Poesia, aí tendo estabelecido fortes laços de amizade, nomeadamente com Ruy Cinatti e Jorge de Sena com quem se correspondeu. No tempo de mordaça e de repressão que lhe coube viver, Sophia, que corajosamente se opôs ao regime ditatorial de Salazar – o «velho abutre» – sabia que «até a voz do mar se torna exílio/ E a luz que nos rodeia é como grades» (Tempo Dividido, 1959).

Co-fundadora da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, presidente da Assembleia Geral da Associação Portuguesa de Escritores, manteve, depois do 25 de Abril, uma actuação cívica de relevo, tendo sido deputada à Assembleia constituinte pelo círculo do Porto.

Sophia deixou no Livro Sexto uma «Inscrição» justamente celebrada: «Quando eu morrer voltarei para buscar/ Os instantes que não vivi junto do mar».