Um Estado (im)prudente


Em pleno séc. XXI, num Estado que é membro de uma comunidade que se autoproclama o expoente máximo da “civilização” em matéria de proteção dos seus cidadãos e dos seus direitos (leia-se União Europeia), a tragédia de Pedrógão Grande adquire contornos particularmente clamorosos e inaceitáveis.


Apurar, de forma rigorosa, as responsabilidades pode demorar algum tempo, mas uma coisa é, por agora, certa: o Estado falhou. É verdade que as situações de catástrofe (e aqui incluindo as catástrofes naturais) colocam desafios particularmente exigentes, mas esta constatação óbvia não deve simplificar o debate que se impõe travar nem desviar as atenções do problema central: é ao Estado que devemos imputar todas as responsabilidades, sem qualquer tipo de concessão benevolente aos esforços da Proteção Civil, que fez o “possível” no momento, e que esta é uma catástrofe “natural”, incerta e inevitável.

E esta imputação de responsabilidades deve ser localizada na atual “sociedade de risco” (Ulrich Beck), que trouxe consigo profundas alterações na forma como tratamos a negligência e a falta de cuidado. A produção de riscos (políticos, ecológicos, individuais) escapa, cada vez mais, às instituições de controlo e proteção próprias da sociedade industrial; o risco é ubíquo e omnipresente nas relações do quotidiano; os erros e a falta de cuidado podem dar origem a consequências dramáticas quer pela gravidade dos danos produzidos, quer pela sua dimensão – todas estas conclusões (entre outras) não devem servir de argumento para desresponsabilizar o Estado, muito pelo contrário. Sobretudo porque não me parece que, neste caso, o argumento da “incerteza” ou da “inevitabilidade” deva ser acolhido: com os meios (meteorológicos, “algorítmicos”) que existem hoje e com a trágica “tradição” de incêndios do nosso país, a incerteza deve ser reduzida a uma probabilidade quantitativamente determinada. Dir-me-ão que o “risco zero” não existe. Concordo. Porém, o Estado tem de ser capaz de reduzir este tipo de risco a uma probabilidade mensurável, conhecida ou cognoscível, tem de ser capaz de o prever e de o usar para tomar decisões, isto é, de o gerir de forma eficaz. 

O Estado encontra-se hoje sob uma enorme pressão, obrigado a gerir vários tipos de ameaças e a realizar uma amplíssima cartilha de “expetativas”, dele se esperando tudo e mais alguma coisa. Convém, todavia, não esquecer que a prevenção é uma tarefa do Estado que deve ser alocada, em primeiro lugar, às “funções de soberania” e à segurança dos seus cidadãos. E nem se diga que é difícil construir um modelo de referência para o “Estado prudente” ou para o cuidado que é devido: as lições de outros países (europeus ou não) serão por demais suficientes para o delimitar e as conclusões a tirar de episódios anteriores devem ajudar.

Por isso, se é verdade que o apuramento das responsabilidades deve incidir sobre a atuação da Proteção Civil no momento da tragédia, não deve também desprezar o seu desempenho na implementação de uma política de prevenção e de gestão do risco: o SIRESP será eficaz num país tão vulnerável aos incêndios como o nosso? A coordenação centralizada da Proteção Civil será a melhor escolha para um país que se encontra demograficamente tão disperso? Os portugueses devem ter presente esta dimensão da tragédia antes de aceitarem e de se resignarem à “inevitabilidade” do catastrofismo que alguns dos nossos líderes, inicialmente, apregoaram. 
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