Perigo íntimo


Nos últimos 20 anos, a justiça evoluiu muito em áreas como a violência doméstica. Mas há uma parte com a qual só os envolvidos poderão lidar: a gestão das feridas, das culpas e, sobretudo, do medo


Numa entrevista recente, perguntaram-me que processos mais me tinham marcado ao longo da vida de advogado, e eu respondi na perspetiva do seu simbolismo sobre o sistema de justiça e os aspetos do mesmo que foram abordados nessa entrevista. Mas se o enquadramento tivesse sido outro, eu teria dado respostas diferentes. Do ponto de vista do interesse jurídico, teria dito uns; do ponto de vista das relações humanas, outros; e assim por diante. E se a perspetiva fosse a da impressão que os processos me fizeram na paleta das emoções e a do aperto que me causaram nas entranhas, se fosse sobre os que mais me tocaram pessoalmente, então teria escolhido aqueles em que as pessoas envolvidas se encontram, por uma ou outra razão, prisioneiras do medo, especialmente quando esse medo resulta de relações que foram ou são de muita proximidade. Situações de abuso, de perseguição, de violência doméstica, de chantagem, de coação, de ameaça, de manipulação. Situações em que está em causa o mais íntimo e o mais frágil de cada um de nós.

E se me tivessem perguntado como é que, nestes campos, vejo a evolução do sistema de justiça (no seu sentido amplo, isto é, incluindo as polícias e outras instituições, em suma, todos quantos antes ou depois ou ao lado dos tribunais lidam com estes fenómenos) ao longo dos mais de 20 anos que levo de advogado, eu diria que a vejo de modo positivo e que se evoluiu bastante, e nalgumas áreas de um modo muito marcado, como é o caso, por exemplo, da violência doméstica. Bem sei que em Portugal não é habitual ou popular dizer bem (exceto naqueles momentos de embriaguez coletiva em que somos os maiores), mas para mim é certo que – embora continue a haver, como há sempre, o que fazer e o que melhorar – se evolui muito, e bem. Em sensibilidade, em meios, em preparação, em cuidado et cetera. E isso é fundamental, desde logo porque essas situações – embora não conquistem habitualmente primeiras páginas ou aberturas de noticiário – mexem com o que é essencial, que é cada pessoa e a sua esfera privada e, às vezes, íntima. E isso, sem prejuízo de outras coisas colectivas serem importantes, é o que de mais importante há. Aliás, é bom não perder de vista a boa máxima que diz que uma boa tentativa de salvar a humanidade é salvar uma pessoa de cada vez.

Mas, por muito que se tenha evoluído, e ainda venha a evoluir-se, há sempre uma parte a que qualquer ajuda não chega, uma parte pessoalíssima com a qual só os envolvidos poderão lidar, melhor ou pior. Trata-se da gestão das feridas, da incerteza, das culpas, das expectativas e, sobretudo, do medo. E sairão sempre melhor aqueles que consigam não ficar cativos dele. Como bem lembrou Alexandre O’ Neill, em “O Poema Pouco Original do Medo”, o medo tem tudo: olhos, ouvidos, muitíssimos amigos, beijos, luxo, tudo. E escreveu em jeito de grito e de alerta: “Penso no que o medo vai ter e tenho medo, que é justamente o que o medo quer.” E é aí que bate principalmente o ponto, e o desafio individual e pessoalíssimo.

 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990