É natural que num país em que, em termos estratégicos e de planeamento, as últimas décadas se passaram entre dois dilemas fundamentais – o de ser bom aluno europeu e aplicar acefalamente as suas determinações a fim de receber fundos para distribuir às clientelas e o de gastar faraonicamente esse, e muito outro dinheiro, tentando depois protelar o seu pagamento –, os governantes não se apercebam do que aconteceu neste ínterim de 40 e tal anos.
Esta mudança gradual, ainda que relativamente abrupta, porque não demorou mais de uma década a inverter os paradigmas, mas que é avassaladora se considerarmos um intervalo mais longo, consagra o abandono à sua sorte do país rural, ou seja, de muito mais de metade do território.
Se consultarmos os dados fornecidos pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, publicados no portal Pordata, relativamente à população portuguesa empregada por sector de actividade, constatamos o seguinte: em 1974, de um total de quase três milhões e 700 mil portugueses empregados, o sector primário era quem mais empregava, com 1290,5 milhares; o sector secundário empregava 1246 milhares; e o terciário, 1159 milhares.
Estes números, nesta data, fazem constatar uma sociedade onde a ruralidade e a agricultura empregam a maior fatia da população activa.
Em 1986, pela primeira vez, o sector primário empregava menos de um milhão de trabalhadores e, em 2016, a agricultura já só empregava 389 mil portugueses de um universo de cerca de quatro milhões, quando os serviços, ou terciário, empregavam 3158,6 milhares.
Curiosamente, e ainda que não seja importante para este artigo, o sector secundário empregava 1128,3 milhares, número próximo do de 1974.
Estes números espelham, pois, uma mudança socioeconómica e demográfica decorrente essencialmente da adesão à Comunidade Europeia: neste intervalo de tempo, cerca de um milhão de portugueses deixaram a agricultura e cerca de dois milhões, ou mais, entram nos serviços. Ou seja, os números confirmam a desertificação do interior e o abandono maciço das actividades agrícolas (e, por inerência, as florestais a elas ligadas) e, ainda que dos números isso não resulte claro, a modernização do país determinou a obsolescência de algumas indústrias tradicionais ligadas à floresta como fonte de combustível ou matéria-prima.
A economia e o ordenamento do espaço rural, onde o aproveitamento do solo arável era feito com sabedoria e regras “ancestrais” e as estremas, os marcos, os dias de rega ou a exploração dos baldios, ou as servidões, passagens e caminhos, eram questões de vida e de morte, tinham na mata um complemento essencial da lavoura e da agricultura, as de alguma dimensão e a de subsistência.
O mato roçado servia para a cama dos animais; as matas, para pastos; os galhos e os troncos das mondas davam madeira e lenha para aquecimento; a resina complementava as economias de quem vivia do campo; e os periódicos cortes das árvores aportavam rendimentos complementares, de espaço a espaço, às famílias. Nas explorações maiores, a cortiça, as pinhas e a madeira dos pinhais e matas, e outras, estavam integradas no ciclo produtivo e na lógica de exploração das casas agrícolas.
Na indústria, as padarias usavam fornos a lenha, que acendiam com as pernadas mais baixas dos pinheiros, e todas estas actividades contribuíam para que a mata estivesse limpa e menos permeável às intempéries e aos erros humanos, além de que, mantendo óbvio interesse económico e de subsistência, as populações eram vigilantes e preocupadas.
Com tudo o que de bom a modernização do país, apesar de tudo espectacular, nos trouxe em 40 anos, para além de planos de contingência cuja qualidade e utilidade os resultados permitem avaliar com horror, é muito evidente que nada de estrutural e estruturante foi feito para corrigir as assimetrias que essa modernização criou.
No fundo, vivemos num país de serviços que abandonou – no seu caminho para a modernidade e o litoral – o mundo rural e a sua lógica e equilíbrios, retirando daí as pessoas, recolhendo subsídios, e aguardando o desastre.
O progresso sem “plano B” matou-lhe a utilidade económica, e nenhuma medida séria se tomou para avaliar e conter os danos de modificar, nas tais quatro décadas, aquilo que era secular e ancestral na relação quase simbiótica entre os agricultores e o meio rural e suas florestas.
Aceitaram-se os milhões para retirar os agricultores da agricultura, mas não se acautelaram os efeitos do êxodo com prevenção e planeamento.
O país mudou a sua demografia, e enquanto não se perceber que o País mudado precisa de uma nova lógica coerente e efectiva para o mundo rural que foi abandonado e desertificado, só nos restará ir ardendo… e desejar paz eterna à alma das vítimas deste país adiado.
Advogado na norma8advogados
pf@norma8.pt
Escreve à quinta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990