É preciso aprender a respirar antes sequer de se começar a falar


Neste silêncio que se faz enquanto se ouve as notícias, enquanto se chora, enquanto não se compreende, enquanto se interroga, enquanto se reflete, assumimos o direito de estarmos tristes


Viramos a moeda ao contrário. Olhamos para o seu reverso. Sabemos que há outra coisa do outro lado da sombra. Um lado não vive sem o outro. E por sabermos disso, temos pressa de inverter a face da moeda para que o mau passe a ser bom. Mas não vale a pena limparmos as lágrimas do rosto com os olhos ainda secos. Não vale a pena passarmos ao consolo antes de começar a doer.

E neste compasso de espera, em que ainda não passámos para o outro lado da ponte, em que ainda há um caminho a percorrer, em que as palavras ainda não são palavras porque ainda não estamos aí, percebemos que é preciso aprender a respirar antes sequer de se começar a falar. Mas o problema é que o ar que se respira agora é preto, é denso. E como se respira um ar irrespirável? Como arrumamos as memórias de uma infância se as gavetas, as fotografias, as peças da casa arderam ao mesmo tempo que as almas? Como se espera neste compasso de tempo?

No silêncio.

É preciso aprender a respirar antes sequer de se começar a falar. É preciso silenciar as palavras para se saber o que dizer.

Neste silêncio que se faz enquanto se ouve as notícias, enquanto se chora, enquanto não se compreende, enquanto se interroga, enquanto se reflete, assumimos o direito de estarmos tristes. O silêncio permite-nos isso. Abre-nos essa porta. O silêncio convida a tristeza a ser, a existir, porque ela já está lá. Convida-a a sair.

E às vezes precisamos de usufruir do direito de estarmos tristes. Porque é preciso passar pela tristeza para depois ser outra coisa.

Todos os anos, na aldeia onde sempre vivi, somos assustados com o fogo. Nunca deixámos as nossas casas. Nunca deixámos as nossas mangueiras, baldes, os nossos paus. Nunca fugimos. Enfrentámos as chamas, aos gritos mas sem choro, porque ficamos transformados com a adrenalina da luta e só baixamos os braços, exaustos, partidos, quando o incêndio nos deixa em paz. Não por sermos heróis, mas porque em causa está a nossa casa, o nosso lugar.

Mas nunca nenhum dos nossos morreu no fogo. Por isso, sinto na pele as imagens que vejo, mas sei que nada sei. Nada posso entender. Porque agora não estamos a falar só de uma casa, de uma memória que se perde. Estamos a falar de famílias inteiras que se separam. E por mais que sintamos, não podemos entender. Olho para aqueles rostos desfeitos que perderam os filhos, os pais, os amigos, e sinto que nunca poderemos entendê-los.

Estendemos a nossa solidariedade, o nosso amor, mas só o tempo e a coragem individual de cada coração poderão ajudar cada uma destas pessoas.

Não entendemos, mas sentimos. E é isso que tenho feito nestes dias: sentir. Porque não posso entender.

Claro que é frustrante não compreender. Mas não compreender e sentir é ainda mais brutal, mais intenso e até mais verdadeiro do que se entendêssemos o que se está a passar. Sentir sem saber porquê é mais visceral. Profundo. Intenso. Sentir sem termos ainda respostas (que um dia terão de ser dadas) é ser apenas humano. É sentir por sentir.

E, afinal, o que é isto? Que dias contraditórios são estes? Temos sabido tudo aquilo que não queríamos saber e que não compreendemos mas, ao mesmo tempo, há um sentimento aconchegante e estranho por percebermos que somos um país que ama. Temos visto a vida de tanta gente a ser virada ao contrário, os telhados das casas transformados em céus abertos, os dias vividos como noites e, mesmo assim, ainda não faltaram abraços.

Temos cegado no fumo e por culpa da poeira e, simultaneamente, nunca vimos tão claramente as nossas falhas. Temos ouvido e partilhado histórias de perda, separação e morte, mas nunca nos falta a gratidão quando sabemos que alguém se salvou no caos.

Estes dias têm sido tão contraditórios. Mas a verdade é que a dor e a esperança têm dançado, juntas, mostrando-nos que sempre foram um par. Talvez nunca tenham sido contraditórios.

Talvez sejamos feitos disto tudo – de devastação e de composição, de perda e de ganho, de morte e de vida, de luto e de amor.

Talvez estejamos mais cheios do que pensávamos. Talvez não sejamos só gadgets, só likes, só rotina, só aparência, só ironia, só frustração, só indiferença. Talvez tenhamos ainda emoções, compaixão, vontade, garra. Talvez saiamos de casa para morrer porque fomos tentar salvar os outros, talvez tenhamos a capacidade de chorar por uma família que nem conhecemos, talvez ainda tenhamos capacidade de sentir. Talvez até estejamos vivos.

Talvez até estejamos vivos como aquele fogo que arde.

Talvez até estejamos vivos.

 

Blogger

Escreve à quinta-feira