Quase diariamente há um político que se lembra de reclamar ou prometer reformas estruturais, sem que se perceba o que quer dizer com isso ou se evoque a circunstância de termos andado anos a fio a fazer reformas estruturais sistematicamente. Foi, aliás, a coisa que mais fizemos e nem sempre bem.
O conceito de reforma estrutural foi introduzido no léxico político português pelo saudoso e corajoso Prof. Mota Pinto, logo quando em 1978 foi indicado primeiro-ministro de um efémero governo de iniciativa presidencial a convite de Ramalho Eanes, ao qual exigiu a condições para mudar substancialmente certos aspectos da sociedade, coisa que a conjuntura de então não permitiu.
Seja como for, a ideia das reformas estruturais ficou. E realmente era indispensável iniciar um grande processo de transformação da sociedade portuguesa. Isto porque vivíamos uma situação estranha e complexa em que se acumulavam normas e configurações herdadas do Estado Novo e uma lógica colectivista resultante do PREC, das nacionalizações e ocupações verificadas no período de brasa em 75. Portugal era no final dos anos 70 uma espécie de regime de eurocomunismo, com liberdade político-partidária mas com uma economia estatizada. Só com o governo Balsemão é que, anos depois, se começou a europeizar o país, através de uma difícil e parcial revisão constitucional. Mota Pinto voltou mais tarde ao governo como vice-primeiro ministro de Mário Soares para construir o chamado bloco central, feito em nome da implementação (outra palavra trazida por Mota Pinto para o nosso dicionário político) das tais reformas estruturais.
É preciso, entretanto, dizer com rigor que as maiores reformas estruturais que foram feitas aconteceram nos governos de Cavaco Silva por iniciativa dele, mas sobretudo por via das ajudas e das imposições que a nossa adesão à União Europeia implicou e que genericamente estavam implicitamente aceites desde o pedido de adesão à então CEE.
É essencial recordar que nos inícios dos anos 80, Portugal era ainda um país onde os bancos, com excepção do Montepio, eram todos do Estado (o que pelos vistos não era assim tão mau), onde a única Universidade privada era a Católica, onde não havia TV privada e onde os jornais eram praticamente todos do Estado. Isto para citar apenas alguns exemplos de situações que hoje são inconcebíveis e nas quais já não se refere (para não confundir mais o leitor) a tutela militar que existia por via de um conselho da revolução que só desapareceu com a tal revisão constitucional de Balsemão que deu aos civis a primazia na política. Só nos anos 90 é que nos estabilizámos dentro da média do modelo europeu que compatilizava áreas públicas e privadas num equilíbrio aceitável que foi destruído já este século por um impulso neoliberal e selvagem.
Basta este pequeno sobrevoo do que foram os primeiros anos da democracia acrescentado do período do cavaquismo para termos a noção exacta das profundas reformas estruturais que Portugal fez por vontade própria ou por imposição externa.
Nos dias de hoje a situação mantém-se. O que está a mudar e que mexe na estrutura da nossa sociedade tem a ver com desígnios e interesses externos, uns altruístas e outros (a maioria) ligados a negócios e visões sociopolíticas tendentes a favorecer os grandes grupos industriais, comerciais, de serviços ou financeiros.
Mas é preciso ser claro: os países têm e terão ainda uma lógica nacional e a possibilidade de não aceitarem tudo o que lhes querem impor de forma cega. Ora essa circunstância, bem patente por exemplo quando o actual governo conseguiu aproveitar da melhor forma uma reversão da política de austeridade da União Europeia mudando a prática do executivo anterior, deveria levar a que certos políticos não andassem a reclamar a torto e a direito reformas estruturais sem as explicar muito bem, querendo ser mais papistas do que o Papa ou mais “troikistas” do que a troika.
É que por detrás dessas proclamações esconderam-se recentemente interesses e reformas que por vezes não nos eram sequer exigidas e que acabaram por prejudicar os cidadãos, em áreas como a saúde, a segurança social ou o emprego depois, por exemplo, da venda a pataco de empresas que podiam manter-se na esfera do Estado e dar lucros, em vez de serem desmembradas.
A grande reforma estrutural necessária é o Estado passar a ser eficaz e confiável, o que está longe de acontecer. Esse seria um programa a sério e não uma frase feita ou um embuste. De reformas estamos todos fartos, sobretudo quando elas vão no sentido da regressão de direitos e regalias. O que gostaríamos colectivamente é que o quotidiano não fosse tão hostil ao cidadão e que o exercício da política cuidasse menos de reformas misteriosas e mais de fazer as coisas funcionar, mudando o que está mal e mantendo o que está bem e tem sucesso, em vez de manter o que está mal e boicotar o que tem sucesso. Se certos políticos reflectissem sobre isso, teríamos mais bem-estar e menos conversa fiada.
Jornalista