KAZAN – Sai das janelas do Conservatório, já aqui ao lado, o som agradável e afinado, harmonioso, de instrumentos de corda. O dia acordou bonito sobre Kazan e sobre a colina onde vivem os russos desta cidade de tártaros. Vejo pelos passeios grupos de soldados jovens nas suas fardas de caqui. Levam pastas nas mãos em vez de armas. Dizem-me que este é um bairro de escolas: música, um internato, um colégio militar. Não sei porquê, recordo-me de uma velha canção francesa: “Enquanto houver um militar/ seja ele o teu irmão ou o teu/ nunca a Humanidade terá um minuto de sossego.”
Hoje, para já, parece estar num sossego total pela tarde fora, enquanto na televisão, em Sochi, lá para os lados do mar Negro, a Alemanha vai batendo a Austrália (olha, olha, os “aussies” empataram… e já estão a perder outra vez) no jogo derradeiro desta primeira jornada da Taça das Confederações que a gigantesca Rússia, perdida nas estepes até aos confins de Vladivostok, tão alegremente organiza sem que se lhe possam apontar erros de palmatória – pelo contrário, um serviço excelente proporcionado por centenas de voluntários com o pequenino senão de nem todos falarem qualquer coisa que não seja o fascinante mas pouco prático russo, com as suas sete declinações e dezenas de sotaques.
Para Portugal, o Portugal-campeão-da–Europa, com toda a responsabilidade que isso acarreta – ainda por cima sabendo que a Alemanha, com uma soberba bem teutónica que o sangue não deixa desmentir, resolveu trazer uma equipa assim mais para o acessível, se há algo de acessível num filho da velha Prússia –, as coisas tiveram um início meio dececionante, com aquele empate ao cair do pano, ainda por cima de cabeça, num canto, marcado por um tipo moreno chamado Moreno que não era propriamente nenhuma trave.
Nada de preocupante, é claro. Afinal, o México, com o seu futebol meio toureador, de raça e trejeitos, também tem de ser encaixado na lista dos favoritos. Juntamente com o Chile, que bateu os Camarões por 2-0 em mais um jogo cheio daquelas grandessíssimas estuchas, como diria o João da Ega, que são as infindáveis interrupções para se escutar a sapiente opinião de uns juízes de fora de linha que queimam as pestanas numa multiplicação de slow motions repetidos na pantalha que têm à frente.
Desculpem lá, mas isto está a ficar uma seca. Futebol à prova de erros pode ser qualquer desporto jogado com os pés, mas terão de lhe inventar outro nome. Ainda por cima se resolverem aplicar- -lhe essa verdadeira transfusão sanguínea destas recentes regras saídas da frutuosa imaginação de um senhores da FIFA que não devem ter, pura e simplesmente, nada de mais útil para fazer que não seja estragar um jogo que anda por aí há mais de cem anos a encantar o mundo e quem nele vive.
Para Moscovo
A seleção nacional voou ontem para Moscovo e eu irei logo atrás, como me compete, não antes sem tirar notas sobre esta cidade admirável, entalada entre o correr mole do Volga e do Kazanka, com um pequeno lago natural pelo meio que espelha um Kremlin bem menos vistoso e poderoso do que o outro, não deixando, por isso, de ser encantador ao ponto de se ter transformado em património da humanidade de que falava há pouco.
Ao longo da Bolshaya Krasnaya, a Grande Vermelha, que conduz ao centro histórico, uma certa calma provinciana não corresponde aos seus mais de um milhão de habitantes. As árvores largam aquele cotão que parece neve quando pousa nos passeios e os deixa brancos. Voam em flocos a fazer de conta que desmentem o advento do verão e as temperaturas felizes.
Nas paredes da esquadra da polícia, fotografias a preto-e-branco de gente procurada. Homens façanhudos, raparigas ameninadas. Crianças desaparecidas. Onde estarão a esta hora da tarde em que o céu vai escurecendo a pouco e pouco?
Numa esplanada, um grupo de rapazes revolta-se sonoramente contra o árbitro do jogo de Sochi, indeciso quanto ao segundo golo australiano. Frágil defesa a alemã. Os fiscais televisivos dão golo. É golo. Mas não é germânica a imediata preocupação lusitana. É russa. Da mesma Rússia que, vencendo a Nova Zelândia, arrancou na liderança do grupo e precisa agora de ser contrariada.
Durante o Portugal-México, na Arena de Kazan, os russos fizeram-se ouvir e bem. Gritavam “Rassia! Rassia! Rassia!!!” como se fosse o seu onze que estivesse em liça. Um aviso para o que espera os portugueses em Moscovo, amanhã. É que, como bem sabe o engenheiro do Euro, Fernando Santos, desta vez, ao contrário do que sucedeu em França, o terceiro lugar do grupo não concede qualificação, por muito melhor que seja na comparação com o seu homólogo do outro lado.
Passarinhos rabilongos saltitam por entre as mesas e esvoaçam depois para o verde escuro e cerrado dos pinheiros. Qualquer coisa me faz sentir em casa em lugares como este.
Vai chover mais logo, avisam.
Para já, no Kremlin, os telhados turquesa da mesquita de Kul Shariff estalam de sol, debruçados sobre Tatarskaya Sloboda, a cidade dos tártaros.
A Alemanha ganha. Por pouco, mas ganha. A Alemanha ganha: terrível cacofonia!