Alberto a fumar um cigarro, Camel light, no canto da boca, já sem tabaco para inalar, já a queimar o filtro, já a sentir o calor da cinza a aquecer-lhe os lábios ressequidos. Alberto não se importa. Não lhe faz mossa. Agora já nada lhe faz mossa. Alberto continua a fumar o cigarro que já não existe.
Alberto com o olhar perdido por entre o fumo que o rodeia, não é bem fumo já, é uma estranha claridade em tons de baunilha, o filho do fumo talvez. Alberto não dorme há não sei quantas horas. Alberto não se importa. Alberto recusa-se a adormecer até que o ar deixe de cheirar a terra queimada, até que a luz volte a penetrar a barreira de névoa que teima em lembrar a todos o que acabou de acontecer. Alberto quer chorar mas sabe que não pode. Não pode.
Alberto tem 64 anos e é bombeiro voluntário desde os 16. Alberto pensa que já viu de tudo, suportou todos os murros secos da perda, todas as garras esquivas da dor, todas as noites passadas em branco a lutar contra o derradeiro Adamastor, tudo. Até que a noite de sábado chegou, e Alberto reaprendeu a viver quando a morte o abraçou com ganas de o levar.
Alberto acende outro cigarro, outro de muitos, de tantos que ficaram por fumar nas horas que pareceram infinitas naquele inferno maior de um país, de um mundo inteiro a arder mesmo à frente dos olhos de Alberto.
O silêncio de tudo. O silêncio vão. O silêncio das horas. As horas. Alberto sentado no banco de esplanada, daqueles brancos, daqueles baratos, daqueles sujos, comidos pela porrada do tempo. A fumar um cigarro e a olhar para o vazio por entre o fumo que o rodeia, ainda e talvez para sempre.
Alberto o carpinteiro, feito bombeiro no tempo que sobra, ou se calhar é o contrário. Provavelmente é o contrário. Alberto o bombeiro feito carpinteiro nos intervalos de se saber herói.
A noite de Alberto na noite das noites. A noite em que Hefesto, Deus do Fogo veio dormir por entre as serranias de Pedrógão Grande. A noite em que Alberto tenta domar a vontade de um Deus à coragem do homem. Alberto a falhar. Alberto a sentir o calor arrasador da morte e da ira a beijarem-lhe a pele, violentamente como quem faz amor pela primeira vez com alguém que se sabe ser amor e ódio na mesma carne.
Alberto a pensar na filha de 38 anos que mora em Coimbra e é enfermeira. Alberto a pensar na mulher que já partiu. Alberto a pensar no neto Romeu de 10 anos que acabou agora as aulas e tinha combinado com o avô vir passar duas semanas ao campo. Alberto com a certeza quase absoluta que vai sentir o doce olhar da mulher muito antes de voltar a ver a filha ou o neto Romeu. Alberto não chora, não agora. Alberto avança por entre abraços de fogo que engolem tudo em redor, tudo. Alberto continua a avançar ainda assim.
Alberto a resgatar a Dona Aurora, metida dentro de um tanque de água, talvez nem um minuto antes das labaredas fecharem o círculo da morte naquele terreno do inferno. Alberto a correr por entre o escuro, guiado pela mão de uma bravura indómita, com a Dona Aurora nos braços, às cegas. Alberto a correr. Alberto a correr. Alberto a correr. Alberto a parar. Para lá do anel de fogo como diria o Johnny Cash. Alberto a beijar a Dona Aurora na testa enquanto a pousa delicadamente na beira de estrada, longe da morte de quem já foi.
Alberto o voluntário, que não ganha para as botas que já lhe ferem nos pés. Que não ganha para o peso do equipamento que o empurra para o chão. Que não ganha para o tabaco que lhe rouba segundos de vida a cada baforada vencida. Que não ganha para o ímpeto da imensa galanteria de se saber bombeiro em Portugal. Que não ganha para a incomensurável gratidão por cumprir. Alberto continua ainda assim, continuará sempre.
Alberto ainda não sabe que morrerão 64 dali a umas horas, tantos quantas as cicatrizes de vida que carrega no corpo. Tantos. Tantos.
A aurora fintou a madrugada e uma ténue luz acende o retrato da noite das noites. Alberto exausto. Alberto puxa pelo maço de Camel light ao fim de já não sei quantas horas. Alberto sentado no banco de esplanada, daqueles brancos, daqueles baratos, daqueles sujos, comidos pela porrada do tempo. A fumar um cigarro e a olhar para o vazio por entre o fumo que o rodeia, ainda e talvez para sempre.
Alberto a pensar na filha que é enfermeira e mora em Coimbra. Alberto a pensar no neto Romeu que acabou agora as aulas. Alberto a pensar na mulher que já partiu.
Alberto o bombeiro. Alberto o carpinteiro. Alberto o herói.
Obrigado Alberto, sem ti teriam sido muitos mais. Muitos mais.
João Pedro Santos, Escritor e Humorista