Quando a República Federal da Alemanha foi constituída, a 23 de Maio de 1949, não era uma nação soberana e como tal não dispunha de um Ministério dos Negócios Estrangeiros. O chanceler Konrad Adenauer era simultaneamente o chefe da diplomacia, mas o controlo da política externa germânica estava na mão dos três aliados. Só em 1955, no quadro do Tratado de Paris e com o fim da ocupação, se viria a constituir o “Auswaertiges Amt” (Ministério dos Negócios Estrangeiros) e se iniciaria uma história diplomática de sucesso, tirando lições de uma herança traumática provocada pela “Machtpolitik”.
Como nenhum outro país europeu a RFA dependeu, nas primeiras quatro décadas de existência, de uma política externa sagaz e cooperativa. Irreprimível aos olhos dos norte-americanos que asseguravam a segurança nacional. Leal com os europeus, em particular com Paris, que lhe garantia a legitimidade política. Cooperativa com a União Soviética que detinha a chave da sua soberania. Responsável pelo Holocausto.
Durante quarenta anos a RFA desenvolveu uma “diplomacia redentora”, que se declina no multilateralismo, na integração em múltiplas alianças e na abstinência político-militar no palco internacional. Compensando essa reserva política generosamente através da denominada “diplomacia do livro de cheque”. Com a reunificação do país, em 1990, há uma redefinição da política externa e a questão da “responsabilidade” ganhou outro significado. A Alemanha unificada tem de responder a duas dinâmicas numa primeira análise contraditórias: o retorno à plena soberania implica a redescoberta e reapropriação do conceito de “interesse nacional”, referente clássico das potências, mas por outro lado o prosseguimento de uma projeção pós-nacional da identidade alemã.
Este complexo de questões é crítica e detalhadamente analisado por Christian Hacke, professor de Ciência Política e de História Contemporânea da Universidade de Bona, na sua obra “Die Aussenpolitik der Bundesrepublik Deutschland Von Konrad Adenauer bis Gerhard Schröder” (“A política externa da República Alemã, de Konrad Adenauer a Gerhard Schröder”). Em onze capítulos, Christian Hacke descreve as motivações da política externa na Alemanha ocupada até ao presente Governo e propõe no final do livro um conjunto de perspetivas para o século XXI. Talvez o último capítulo possa ser o mais relevante para compreender a Alemanha dos nossos dias. Nele se elencam os sete factores que enformam a estrutura de interesses da Alemanha – nomeadamente o respeito pelos valores da Lei Fundamental, a situação geográfica central, o passado e os interesses dos seus vizinhos e parceiros na Europa e no mundo – e aponta as prioridades externas germânicas da “Berliner Republik”, defendendo que o conceito de “interesse nacional” deve, sem complexos, balizar a ação externa da Alemanha.
Por detrás de muitas das críticas feitas a Angela Merkel – que passou de bestial a besta e novamente de besta a bestial – há um anti-germanismo alimentado de ressentimentos, medos e nostalgias várias. O que muitos europeus, que acenam com a bandeira da solidariedade quando lhes dá jeito, já esqueceram foi a forma como reagiram à reunificação alemã e como a todo o custo a tentaram evitar. Também olvidaram que o euro foi o preço elevado que a Alemanha pagou por ter recuperado a sua soberania.
Vendo as coisas de um modo racional, como o fez Timothy Garton Ash, “em numerosos aspetos uma Europa mais alemã seria uma melhor Europa. Há muitas coisas no modelo económico alemão – a sua produtividade, as suas relações laborais consensuais, a sua focalização na qualidade, a sua penetração em mercados emergentes – que outros países fariam bem em copiar”.
O argumento é mais subtil do que dizer que a Alemanha abandonou o “europeísmo” de Helmut Kohl e se tornou menos europeia. A Alemanha alcançou o estatuto de um “país normal”, como os restante membros da União Europeia, e deixou de ser “sobre-europeísta” (este processo iniciou-se muito antes de Merkel na legislatura de Schröder e Fischer ). A atual geração de políticos alemães não tem qualquer razão emocional para acatar instituições supranacionais ou para subordinar as suas opiniões à França e a Europa. That’s Realpolitik.
A Alemanha não deixará cair a Europa nem o euro – já deu todas as provas – não por uma qualquer “visão” – já dizia Helmut Schmidt, “quem tem visões deve ir ao oftalmologista” – mas porque, embora cada menos, a Alemanha precisa da Europa.
Escreve à segunda-feira