Gonçalo Pereira Rosa. “Por muitos erros que os jornalistas cometam, a solução não é a censura”

Gonçalo Pereira Rosa. “Por muitos erros que os jornalistas cometam, a solução não é a censura”


Gonçalo Pereira Rosa é jornalista e diretor da edição portuguesa da “National Geographic”, professor do Centro de Estudos de Comunicação e Cultura da Universidade Católica Portuguesa e historiador da mesma instituição. Demorou um pouco mais de dois anos a vasculhar arquivos da censura, da PIDE e do Ministério dos Negócios Estrangeiros para escrever “O Inspetor…


Gonçalo Pereira Rosa lançou recentemente “O Inspetor da PIDE Que Morreu Duas Vezes – e outras gaffes, triunfos e episódios memoráveis do século xx na imprensa portuguesa” [Ed. Planeta], uma espécie de história do séc. xx contada através dos jornais em que as vicissitudes e glórias do jornalismo português são recordadas em 26 histórias paradigmáticas. Um século de episódios – em que foram noticiados ovnis sobre a serra da Gardunha e mortes que não tinham ocorrido, mas também foram conseguidos exclusivos mundiais – contados numa altura em que a venda dos jornais continua a baixar e em que o jornalismo procura, talvez um pouco à deriva, o caminho. Talvez seja bom olhar para o passado.

 

“O Inspetor da PIDE Que Morreu Duas Vezes” foi o título que escolheu para o livro e é uma das 26 histórias que conta. Se não fosse este, qual seria?

Seria provavelmente “A Literatura Apressada”, que é aqui que eu considero o jornalismo ou, pelo menos, a reportagem. Está muito na moda o jornalismo ser o saco de apanhar da sociedade democrática moderna. É o alvo mais fácil, a maneira mais fácil de criticar o tratamento dos temas públicos e a forma como é intermediado para a sociedade civil. O exercício que faço é sempre o inverso: poderíamos viver sem estes intermediários, viver sem jornalismo? É muito fácil criticar quem faz estas crónicas apressadas do quotidiano, mas a verdade é que elas são ainda e, tanto quanto consigo antever, a forma mais democrática e razoável de fazer chegar a informação ao público. Há também um equilíbrio que quero fazer com este livro, que é uma espécie de reparação para com nomes do passado do jornalismo que são fundamentais. 

E a maioria deles foram esquecidos – como diz aqui a certa altura, viveram uma “glória efémera”.

Sim, mesmo nos casos mais espetaculares e que de certeza fizeram falar a sociedade daquele tempo, ao contrário de outras profissões, como a engenharia, a advocacia, a política, a própria medicina. Os nomes principais dessas disciplinas perduraram na memória coletiva. No jornalismo somos muito ingratos a tratar de alguns monstros do passado. Há histórias nobres aqui no meio destes episódios, no meio de outros mais embaraçosos. Tentei sempre resistir a um exercício que era o de comparar o que eles fizeram face à realidade e medir a distorção. Não posso nunca colocar-me na pele de alguém que estava a ser vigiado ou de alguém que não tinha a internet para validar factos. 

E que, por vezes, eram enganados deliberadamente pelas fontes.

Como nós hoje somos (ri-se). Mas eu escolhi o título “O Inspetor da PIDE Que Morreu Duas Vezes” [uma notícia dada no “Diário de Notícias”, em 1960, sobre a morte de um subdiretor da PIDE – Pessoa de Amorim – que, afinal, estava vivo] porque é, de facto, uma história paradigmática. Aconteceu com, provavelmente, o melhor jornalista daquela geração, o mais bem preparado, o jornalista que saíra da faculdade muitíssimo culto. Falo do António Valdemar. Se aconteceu com ele, podia acontecer com qualquer um, é essa a lógica que está subjacente a esta ideia em que uma sequência de pequenos azares leva a um terrível acidente.

Isso leva-nos ao propósito deste livro. Na introdução escreve: “(…) sugerindo ao leitor contemporâneo a complexidade desta função social exercida pelos jornalistas – atreita ao erro, volátil, muitas vezes sobranceira.” Sentiu necessidade de relembrar o leitor dos jornais estas características que vê na profissão?

Senti. E sinto. Não há profissão mais autocrítica que a do jornalismo. Julgo que até os maiores críticos do jornalismo o reconhecerão. Não há ninguém que exponha mais os seus erros, as suas limitações do que o jornalista. Mesmo que talvez não as assuma tanto como limitações, há um culto da perfeição que é inalcançável. Nunca faremos jornais e serviços de rádio e de televisão perfeitos. Senti necessidade de sair em defesa da profissão e, de alguma maneira, de sublinhar as limitações. Continuaremos a errar, mas somos de facto, até ver, o intermediário mais democrático e mais correto para fazer chegar a informação ao povo. Claro que há, como digo, a tal sobranceria de muitos; claro que há, como em todas as áreas, maus profissionais. Mas ao mesmo tempo, sem nós, um mundo só feito de redes sociais… Acho que temos tido na última semana algum cheirinho, algumas marcas do que seria o futuro sem diários. E não é bonito. 

É curioso porque foi buscar os grandes nomes do século xx do jornalismo que trabalharam numa época sem redes sociais para justificar, de certa forma, o que está a acontecer com o jornalismo com o advento das tais redes.

Verdade. Há um motivo de ordem metodológica para eu não ter ido buscar histórias mais recentes. Essas ainda estão na memória e ainda há quem possa contá-las. Quis pegar em incidentes antigos para dizer que há um fio condutor entre a maneira como a profissão era exercida antes e a maneira como a exercemos hoje. Claro que a pressão do tempo, hoje, é diferente, a hidra do público tem mil cabeças que vigiam o nosso trabalho de maneira muito mais agressiva – e claro que há vantagens nisso -, mas sim, senti necessidade de, através de exemplos do passado, justificar um valor social que acho que é muito esquecido. Posso trazer um incidente dos últimos dias: quando o “Correio da Manhã” noticiou ou difundiu aquele vídeo, houve muita gente a apelar à censura. Se há coisa que este livro demonstra é que a censura tem mil olhos e que é uma porta que, quando se abre, já não se fecha com tanta facilidade. A partir do momento em que assumimos que é possível censurar um conteúdo, a fronteira é rapidamente alargada a outros casos. Por muitos erros que cometamos, a solução não é o esforço censor e isso é uma das coisas que espero ter demonstrado.

Um dos apelos que faz é, aliás, que seja feita a história do jornalismo que ficou por publicar entre o período de 1926-74. 

Há aspetos que tornam muito difícil fazer esta história da censura. Muitas das instruções eram orais, por telefone. O que deixa um rasto – e muito escasso para o que eu esperaria no início do projeto – são os processos, quando finalmente se avança para uma queixa e uma multa. Posso dizer-lhe que, por exemplo, um jornal como o “Diário de Lisboa”, em 48 anos de censura, teve menos do que um processo por ano. Daqui não se pode suportar a conclusão de que, afinal, a censura não era tão incisiva como se poderia supor, pelo contrário. Ela funcionava era a montante, travando logo os granéis quando eram levados à censura, punindo os chefes de redação e os administradores com atrasos. Acaba por instalar-se na própria empresa jornalística uma certa censura interna, às vezes por credo ideológico – e havia alguns que consideravam que o estavam a fazer por motivos certos – mas, na maior parte das vezes, era por motivos administrativos: “Vou censurar este conteúdo porque me vai fazer perder os comboios da tarde, vai-me fazer perder vendas, vou ter de ouvir depois o meu administrador e vou perder receitas.” Toda a máquina está montada para punir o abuso antes que ele seja cometido.

Às tantas explica no livro que, durante esses períodos censórios, começam a ser utilizados anúncios para serem passadas certas mensagens. 

É muito engraçado notar a evolução nos documentos da censura, o que é que começou por ser censurado. Primeiro foram as páginas literárias e as de política pura e dura, por motivos óbvios. Nas páginas literárias estavam aqueles que mais bem escreviam e que conseguiam sub-repticiamente inserir conteúdo não aceitável. Depois vai aumentando o leque de secções que começam a ser vistoriadas. As crónicas de desporto tornam-se também elas interessantes, assim como as de crítica teatral. Como se fosse um pouco o jogo do rato e do gato, tapava-se um lado, tentava-se por outro. Tentativas quase sempre inglórias, é bom dizer isto. Há um romantismo de certos lobos da profissão de que era possível enganar a censura. Não era, na maior parte dos casos. A crónica da censura é sobretudo uma história de derrotas. Mas há momentos em que se usa a publicidade como o espaço menos vigiado pelos censores para passar mensagens. O caso mais paradigmático é o da prisão do Álvaro Cunhal. Os amigos resolvem noticiar através do espaço comercial d’“O Primeiro de Janeiro” e do “Jornal de Notícias” que o Cunhal estava preso através de uma mensagem críptica.

Tem ideia de quantos censores estariam ao serviço do Estado Novo?

Nos anos 60, havia mais de 20 em simultâneo. A maior parte vindos das Forças Armadas, mal pagos, em fim de carreira e, portanto, muito receosos de que um erro seu acarretasse o despedimento e a perda daquela avença. O Raul Rego tem vários livros sobre isso – muitos censores cortam não porque tivessem detetado conteúdo proibido, mas por medo que ali estivesse algo que eles não tivessem percebido.

Então acabam por cortar todos a montante: os jornais, por achar que não ia passar; os censores, para evitar um erro.

Por isso é que falava em crónica de derrota, porque é tão difícil fazer passar informação não autorizada com um sistema destes… E depois ainda havia a polícia política, se passasse. Há vários relatos de censores pouco letrados que, portanto, cortavam sem perceber muito bem ou que às vezes era fácil enganar. Há uma velha história no “Jornal de Notícias”: conseguiram referir-se durante cinco ou seis anos ao Lenine tratando-o só pelos dois primeiros nomes porque o censor não tinha cultura suficiente para saber quem era Vladimir Ilitch. Mas isso muda no final dos anos 50, 60. Os censores que são colocados já são muito mais cultos e preparados para o trabalho.

Acha que algum dia vai ser possível quantificar ou até qualificar as histórias e notícias que não foram publicadas durante a ditadura?

Acho que não. Um dos motivos prende-se com o facto de haver um certo romantismo dos resistentes. Não escondo que há um conjunto de histórias que me são contadas e que depois não batem certo documentalmente, uma certa mitologia idealizada do que teria sido o comportamento dos resistentes. Há uma frase-chave, julgo eu do Fernando Correia, que foi jornalista do “Diário Popular” e do “Diário de Lisboa”, e que diz a certa altura que era um mito a ideia de que se estava nos jornais contracorrente com o poder. Na verdade, haveria 10% ideologicamente ligados ao Estado Novo, outros 10% à oposição, e os 80% que faltavam eram mangas de alpaca do jornalismo, gente que queria era despachar o serviço e ganhar a vida. Portanto, desse ponto de vista, a ideologia do jornalista que escolhe a expressão certa para fugir ao censor e publicar conteúdo não autorizado é uma construção.

Antes de passarmos para o processo de investigação deste livro, peço-lhe um exercício de futurologia. Se alguém tivesse a mesma ideia, daqui a cem anos, de escrever algo semelhante, acha que iria ter mais ou menos dificuldades do que as que encontrou? Pergunto-lhe isto porque há muitas histórias que já são apenas e unicamente pensadas para o formato online.

Talvez um investigador, daqui a cem anos, possa ter dificuldade em encontrar casos em que se deparasse com esta aura romantizada que damos ao jornalismo. Julgo que é o Rui Ochôa que, num dos capítulos, me diz que são essas as histórias que o público quer ler. Em 1980, ele participou no resgate dos pescadores portugueses aprisionados na Mauritânia pela Frente Polisário e diz que o que fizeram naquela altura, hoje, não seria possível. Agora haveria dez chefes a querer garantir resultados que não se podem garantir, a não querer despesa e a não permitir que um jornalista passasse dois meses na mesma história. Há uma série de mecanismos de rotinização e burocratização no jornalismo que nos tornam hoje mais profissionais de gabinete do que eu gostaria de permitir.

Todas as razões que elencou são maioritariamente economicistas.

Sim, são fatores economicistas. Os jornais nunca deram muito dinheiro, mas até aos anos 70 eram negócios lucrativos. Hoje são negócios menos lucrativos.

Escolheu 26 histórias, deixou muitas histórias de fora?

Muitas. Algumas porque não consegui confirmar cabalmente, duas porque não quis cometer inconfidências de ordem privada. A PIDE, apesar de muito intrusiva, não estava sempre certa. Não era por vir num relatório da PIDE que fulano era homossexual ou que tinha um caso com uma colega de trabalho que isso era mesmo verdade. O espelho daquela organização é também o espelho dos delatores deste país. Duas histórias tinham a ver com isso. Houve outras em que me faltavam elementos e espero ainda encontrá-los. Às vezes, é uma agulha num palheiro. Esta história do Pessoa de Amorim, o subdiretor da PIDE que foi dado como morto, é uma coisa deste tamanho [faz um gesto com os dedos simulando um espaço pequeno] no “Diário de Notícias” (DN). 

Como chegou, por exemplo, a essa história em concreto?

Encontrei o rasto do processo PIDE. Era uma história contada pela velha guarda do DN.

É a tal memória que se vai esvaindo das redações.

Havia gente no DN com 40 anos de casa que tem saído com estas reestruturações e, com eles, sai uma peça importante da memória. Essas histórias contavam-se nos gabinetes, coisas especialmente dos anos 60 do DN, que era um microcosmos muito especial. Julgo que é o António Valdemar que me diz que se sentia um bocadinho num aquário: ele que vinha do “República” e de “O Reviralho”, e sente-se ali no meio de gente do Estado Novo, de delatores da PIDE, dois monárquicos, enfim, um aquário complicado de piranhas. Essa história do inspetor que foi dado como morto, até pelas consequências que teve – o Valdemar foi castigado e posto, entre aspas, a cobrir missas até se converter -, foi por aí que a encontrei. 

No início do século xx e até muito tarde, a norma de escrita do jornalismo era muito diferente da que temos hoje em dia. As descrições sanguinárias eram sinónimo de qualidade? 

Eram. Quanto mais pormenores brutais ou sangrentos, mais elogiado era o repórter. O Esculápio [Eduardo Fernandes, jornalista de “O Século” e cofundador de “O Diário”] diz isso nas suas memória. Ainda não havia fotografias – sobretudo no final do século xix – e, não havendo imagem disponível, o melhor era quem descrevesse como é que alguém tinha sido morto ou o sangue que jorrara. Há aqui uma atração evidente e uma valorização do profissional que consegue encontrar isso com mais vigor. Depois, durante a ditadura, a censura emite um documento-padrão, a partir do final dos anos 30 – o José Cardoso Pires fala nisso -, onde se limita todo o tipo de crimes a 14 linhas, senão a censura cortava, para não perturbar a ordem pública. Depois de 74 há o processo inverso, voltamos a ter liberdade total e, com esta liberdade, vem o interesse desmesurado por tudo o que cheira a crime, com a agravante que agora temos vídeos e imagens de apoio. O quadro não é bonito.

A partir de que altura é que o tipo de linguagem jornalística se aproxima mais daquilo que temos hoje em dia?

Muito mais tarde, a partir do momento em que começa a sair gente das faculdades para os jornais, em meados da década de 60. Há um momento-chave no “Diário Popular” em que o Francisco Pinto Balsemão e o Guilherme Brás Medeiros organizam precisamente um concurso para que jovens vindos das faculdades pudessem ingressar no jornal. É uma mensagem muito clara de que a profissão vai deixar de ser um espaço ad hoc onde qualquer pessoa entra desde que tenha um jeitinho. Durante muito tempo houve uma estratificação dos profissionais da imprensa. Havia o informador, que não precisava de saber escrever, só precisava de ir obter os tais pormenores chocantes. Nalguns casos eram quase analfabetos. Depois começa a chegar o modelo bipartido: os jornais enviam uma pessoa para o campo que telefona com a informação e quem está na redação constrói o texto. Depois, quando chega esta gente nova da faculdade, traz um bocadinho o estilo francês e uma reportagem muito mais cuidada. Começam a escassear os jornalistas participantes, que eram uma das marcas do nosso jornalismo, chega a ideia de que o jornalista deve ser muito mais um observador distante e não participante – assistir mas não intervir. Numa das histórias do livro, o Reinaldo Ferreira [jornalista de “O Século” conhecido como repórter X] conta que levou inclusivamente objetos de uma cena de crime para casa para os estudar melhor. Hoje seria impensável. O Reinaldo entendia a profissão como um espaço de participação e, se fosse possível resolver o crime antes da polícia, melhor. Hoje espero que nenhum dos nossos colegas ache isso (risos). 

Essas personagens todas de que já falámos – o Reinaldo Ferreira, o Esculápio, o Valdemar, etc. – têm a tal aura, lá está, de lenda. Isso também é uma marca dessa época em que, como escreveu, “os jornais se apregoavam a plenos pulmões”. Acha que essa aura está a acabar?

Acho que já não há. Hoje em dia, se houver, relaciona-se com o jornalista-comentador, seja na televisão, na rádio ou ainda no jornal. Mas o jornalista-repórter como foi o Norberto de Araújo, ou o jornalista–entrevistador como foi o Baptista-Bastos, são uma espécie em vias de extinção ou já mesmo extinta, para fazer aqui a ponte com a minha “National Geographic”. Se eu aparecer amanhã num jornal a tentar escrever uma crónica de autor como o Assis Pacheco ou o Sttau Monteiro faziam na década de 70, serei disciplinado até escrever como os outros. Por isso perde–se um bocadinho dessa aura mítica, da esquerda à direita.

É possível dar a volta a isso?

Gostava que fosse. Também tem a ver com o tempo que cada pessoa leva a consumir um jornal. Hoje não compro um jornal para ler o x ou o y como comprava há 20 anos e tenho muita pena.

Mas porque o x e o y já não existem?

Porque já não têm espaço para escrever. É verdade que o jornalismo de investigação ocupou um pouco essa vaga enquanto houve dinheiro para o pagar, mas hoje é raro também. E, portanto, ficámos só com o tal jornalismo normalizado e com jornais que se leem em dez minutos. Digo isto com pena e sou um comprador compulsivo, sou um dos que, enquanto houver papel, serei dos últimos a ir comprar o jornal às tabacarias. 

Se pegarmos num jornal de hoje e num de há cem anos, visualmente não houve uma mudança assim tão grande. As motivações dos jornalistas também se mantêm? Continua a ser importante ser o primeiro a dar o furo?

Isto é polémico, mas eu acho que, em casos de última hora, a nossa obrigação, mais do que ser o primeiro, passará no futuro para estarmos certos. De alguma maneira, a primazia do exclusivo desapareceu. Antes tínhamos um dia de exclusivo nas bancas. Hoje temos cinco minutos antes que toda a gente copie e faça igual.

E às vezes nem isso, são os outros meios a picar primeiro no digital os exclusivos de quem os deu.

Perfeitamente. Julgo que, no futuro, o mercado validará aqueles que mais vezes estiverem certos, mais do que os primeiros. 

Fala no livro da história de duas mulheres jornalistas [Manuela de Azevedo e Fernanda Reis] que têm um percurso absolutamente incrível. Chegou a conversar alguma vez com a Manuela de Azevedo [redatora que morreu este ano, com 105 anos]?

Cheguei. Uma personagem muito especial não só pela longevidade, mas por ter encabeçado tantas lutas. Não era fácil ser–se senhora naquele tempo.

Como era ser mulher jornalista?

Era preciso ter pele de crocodilo. Tanto ela como a Fernanda Reis e, antes delas, a Virgínia Quaresma, na i República, são verdadeiras heroínas, símbolos de resistência – aquele mundo estava formatado para os homens. Ela chegou a contar-me que havia uma bandeira na redação d’“O Diário de Lisboa” que eles punham para indicar a todos que estava ali uma senhora e não podiam ser eles próprios. Alguns vultos desse jornal foram muito injustos com ela, que conseguiu uma entrevista exclusiva com o rei Humberto ii [que veio de Itália para se refugiar numa quinta em Colares] e conseguiu vender a história à Reuters. Sobre a Fernanda, há muito para escrever sobre ela.

Uma mulher que, em 1951, achou que o jornalismo português já não era para ela e foi para o Brasil!

Cansou-se! Cobriu o conflito coreano e não chegou cá nada aos jornais, devido à tal norma de reduzir ao mínimo possível para não criar agitação social. O magnífico furo que ela teve, saltando de paraquedas na guerra da Coreia, não teve cá referência. Quando ela morre, em 1977, o DN escreve três linhas sobre ela, uma mulher que fez a primeira página d’“O Globo”, que eu saiba foi a única portuguesa a fazê-lo. 

Houve uma máxima do “Diário de Lisboa” que foi dita, lá está, à Manuela aquando da sua contratação: “Minha senhora, no ‘Diário de Lisboa’, os jornalistas têm liberdade máxima e responsabilidade máxima.” Isto faz falta?

(Risos) Faz falta, mas também já não há diretores como o Joaquim Manso, que então o disse. Mas sim, acho que esse é o princípio de uma redação: é um espaço de liberdade e não de constrangimento, mas também de muita responsabilidade. Quem me dera que houvesse mais apelos desses porque são esses apelos que, no fundo, permitiram histórias destas.