Carta aberta a ti, futuro médico


Espero que não te esqueças que não nasceste doutor, nasceste médico. Nasceste para uma função, não para um posto. Torço para que não cegues


Confesso que, ao olhar para ti, ainda tão novo, não tenho como não sentir um friozinho na barriga. Não me leves a mal. Sei que idade não é sinónimo de profissionalismo, mas os teus olhos ainda viram tão pouco. Ainda se espantarão com muitas histórias. Ainda não têm como as comparar. Ainda estão a descobrir. De qualquer forma, não é só proeminente a tua tenra idade. Também percebo que contigo mora a vontade, a ambição, o sonho. Em ti vive o mais importante. E isso, meu amigo, é tão poderoso, tão raro, tão valioso. 

É por te sentir assim que te escrevo. Preciso que me oiças, que me leias, que me decores. Porque eu faço parte daqueles que nunca estarão no teu lugar. Mas tu, um dia, estarás no nosso.

Escrevo então esta carta para te pedir uma coisa encarecidamente, mas antes deixa-me avisar-te que te chamarei “meu amigo”. Porque quando fores médico de alguém serás mais do que o teu currículo. Serás a consciência, serás o alento, serás a esperança. Não te assustes. Não terás de jantar com todos aqueles que te procurarem mas, se esta for a tua missão, o teu coração será naturalmente um coração cuidador. 

Eis o propósito destas palavras: 

Por favor, não te esqueças do motivo por que escolheste este caminho. Não te esqueças de ti a ansiar isto. Não te esqueças do desejo intrínseco e inexplicável de quereres salvar pessoas. Não te esqueças das pessoas. Não te esqueças que estás aqui por causa delas.
Sei que agora estás lúcido, sei que agora é tudo isto que queres, sei que sabes exatamente para onde caminhas. Não duvido de ti. Mas tu sabes também que, se não tivermos cuidado, a vida envelhece-nos não só em anos mas também em vontades. A vida amolece-nos os sonhos. É preciso relembrar o que nos fez querer. É preciso recorrer à memória da alma para nos lembrarmos porque os perseguimos. 

Guarda bem os teus motivos e volta a pensar sobre eles sempre que te estiveres a esquecer. Garanto-te que isso irá acontecer. Por vezes, esquecemo-nos.

Além deste pedido que te fiz, tenho outros. Desejo, verdadeiramente, que não te tornes apenas um senhor doutor e que, quando te perguntarem o nome completo nas bombas de gasolina para te passarem fatura, saibas dizer o teu nome de batismo. Espero que não te esqueças que não nasceste doutor, nasceste médico. Nasceste para uma função, não para um posto. Torço para que não cegues. Para que não cegues atrás do computador, para que não cegues com as certezas, para que nunca sejas só ciência, só fórmula, só estatística, para que saibas o nome de quem cuidas. Os amigos sabem sempre o nome uns dos outros. Decora os teus.

Espero que compreendas que quase todos aqueles que entrarem no teu consultório o farão de forma apreensiva. Espero que os recebas com simpatia e que, de alguma forma, te dês a conhecer. Confiarão a sua vida, não lhes faltes com um pouco de ti também. Lembra-te que, quando fores portador de más notícias, não dirás apenas um resultado. Trarás contigo a mudança de uma vida. As tuas palavras terão eco e eclodirão de uma forma que nunca poderás prever na mente e no coração de quem as ouve. Tudo aquilo que dirás (e a forma como o farás) terá um impacto absurdo neles. A forma como utilizas as palavras poderá ser mais marcante do que aquilo que terás efetivamente a dizer.

Peço-te também que sejas cuidadoso. Cuidado com aqueles que te disserem para não te entregares demasiado aos outros nem te envolveres emocionalmente com as pessoas com quem contactas. Esses conselhos poderão surgir de pessoas que admiras (as medalhas, os anos de serviço, o bom nome poderão iludir-te), e sim, tentarão convencer-te de que assim estarás protegido da dor. Como se a entrega fosse um perigo. Como se sentir compaixão fosse errado. Como se ser gente fosse contra os princípios da medicina. Os mesmos que ensinam sobre o funcionamento do coração poderão ser aqueles que te dirão para não usares o teu. Não te protejas. Aliás, é uma ilusão achares que tens como o fazer. 

Meu amigo: tenho a certeza de que encontrarás o equilíbrio. Tenho a certeza de que encontrarás paz mesmo nos momentos em que o teu esforço e vontade não forem suficientes para salvar a vida de quem precisa. Sei que saberás saborear cada vitória, da mesma maneira que conseguirás viver com as dores das tuas perdas. Sei que saberás ser médico se te colocares também no lugar do doente – porque eu faço parte daqueles que nunca estarão no teu lugar. Mas tu, um dia, estarás no nosso. 
Sê médico. Não doutor.

Carta aberta a ti, futuro médico


Espero que não te esqueças que não nasceste doutor, nasceste médico. Nasceste para uma função, não para um posto. Torço para que não cegues


Confesso que, ao olhar para ti, ainda tão novo, não tenho como não sentir um friozinho na barriga. Não me leves a mal. Sei que idade não é sinónimo de profissionalismo, mas os teus olhos ainda viram tão pouco. Ainda se espantarão com muitas histórias. Ainda não têm como as comparar. Ainda estão a descobrir. De qualquer forma, não é só proeminente a tua tenra idade. Também percebo que contigo mora a vontade, a ambição, o sonho. Em ti vive o mais importante. E isso, meu amigo, é tão poderoso, tão raro, tão valioso. 

É por te sentir assim que te escrevo. Preciso que me oiças, que me leias, que me decores. Porque eu faço parte daqueles que nunca estarão no teu lugar. Mas tu, um dia, estarás no nosso.

Escrevo então esta carta para te pedir uma coisa encarecidamente, mas antes deixa-me avisar-te que te chamarei “meu amigo”. Porque quando fores médico de alguém serás mais do que o teu currículo. Serás a consciência, serás o alento, serás a esperança. Não te assustes. Não terás de jantar com todos aqueles que te procurarem mas, se esta for a tua missão, o teu coração será naturalmente um coração cuidador. 

Eis o propósito destas palavras: 

Por favor, não te esqueças do motivo por que escolheste este caminho. Não te esqueças de ti a ansiar isto. Não te esqueças do desejo intrínseco e inexplicável de quereres salvar pessoas. Não te esqueças das pessoas. Não te esqueças que estás aqui por causa delas.
Sei que agora estás lúcido, sei que agora é tudo isto que queres, sei que sabes exatamente para onde caminhas. Não duvido de ti. Mas tu sabes também que, se não tivermos cuidado, a vida envelhece-nos não só em anos mas também em vontades. A vida amolece-nos os sonhos. É preciso relembrar o que nos fez querer. É preciso recorrer à memória da alma para nos lembrarmos porque os perseguimos. 

Guarda bem os teus motivos e volta a pensar sobre eles sempre que te estiveres a esquecer. Garanto-te que isso irá acontecer. Por vezes, esquecemo-nos.

Além deste pedido que te fiz, tenho outros. Desejo, verdadeiramente, que não te tornes apenas um senhor doutor e que, quando te perguntarem o nome completo nas bombas de gasolina para te passarem fatura, saibas dizer o teu nome de batismo. Espero que não te esqueças que não nasceste doutor, nasceste médico. Nasceste para uma função, não para um posto. Torço para que não cegues. Para que não cegues atrás do computador, para que não cegues com as certezas, para que nunca sejas só ciência, só fórmula, só estatística, para que saibas o nome de quem cuidas. Os amigos sabem sempre o nome uns dos outros. Decora os teus.

Espero que compreendas que quase todos aqueles que entrarem no teu consultório o farão de forma apreensiva. Espero que os recebas com simpatia e que, de alguma forma, te dês a conhecer. Confiarão a sua vida, não lhes faltes com um pouco de ti também. Lembra-te que, quando fores portador de más notícias, não dirás apenas um resultado. Trarás contigo a mudança de uma vida. As tuas palavras terão eco e eclodirão de uma forma que nunca poderás prever na mente e no coração de quem as ouve. Tudo aquilo que dirás (e a forma como o farás) terá um impacto absurdo neles. A forma como utilizas as palavras poderá ser mais marcante do que aquilo que terás efetivamente a dizer.

Peço-te também que sejas cuidadoso. Cuidado com aqueles que te disserem para não te entregares demasiado aos outros nem te envolveres emocionalmente com as pessoas com quem contactas. Esses conselhos poderão surgir de pessoas que admiras (as medalhas, os anos de serviço, o bom nome poderão iludir-te), e sim, tentarão convencer-te de que assim estarás protegido da dor. Como se a entrega fosse um perigo. Como se sentir compaixão fosse errado. Como se ser gente fosse contra os princípios da medicina. Os mesmos que ensinam sobre o funcionamento do coração poderão ser aqueles que te dirão para não usares o teu. Não te protejas. Aliás, é uma ilusão achares que tens como o fazer. 

Meu amigo: tenho a certeza de que encontrarás o equilíbrio. Tenho a certeza de que encontrarás paz mesmo nos momentos em que o teu esforço e vontade não forem suficientes para salvar a vida de quem precisa. Sei que saberás saborear cada vitória, da mesma maneira que conseguirás viver com as dores das tuas perdas. Sei que saberás ser médico se te colocares também no lugar do doente – porque eu faço parte daqueles que nunca estarão no teu lugar. Mas tu, um dia, estarás no nosso. 
Sê médico. Não doutor.