Portugal vandalizado


“O Convento de Cristo é um embaraço grande para o realizador” – esta frase, de Manoel de Oliveira, não deve ser mal interpretada. 


Explico porquê: o realizador centenário, que entretanto nos deixou, referia-se numa homenagem em 2009, na cidade de Tomar, aos obstáculos que a beleza e riqueza do monumento, do ponto de vista arquitetónico, colocavam às escolhas do cineasta durante a rodagem d’“O Quinto Império”, filmado em 2004, naquele que é um monumento classificado como património da humanidade. O cineasta explicava então as dificuldades em escolher os melhores ângulos e as melhores perspetivas, “onde pôr a câmara”, como dizia, tantas eram as escadas, corredores, recantos e pátios, confessando que com frequência recorria à sua intuição artística. 

Ocorreram-me estas considerações de Manoel de Oliveira, e da sensibilidade e respeito subjacentes, a propósito do programa “Sexta às 9”, da RTP1, que na passada sexta-feira exibiu uma reportagem sobre danos recentemente causados naquele mesmo espaço por gente que se diz fazer cinema. Ali se relatava que o convento foi arrendado, por três semanas, por 172 mil euros, para a rodagem do filme “O Homem que Matou D. Quixote”, do realizador Terry Gilliam. Ao que parece, a produção do filme fez uma fogueira de 20 metros, utilizando dezenas de bilhas de gás, cortou árvores, partiu telhas e pedras centenárias. A Direção-Geral do Património, procurando sacudir a água do capote, já se pronunciou, justificando que a situação terá sido apenas um acidente. Já a produtora do filme garantiu a legalidade do “acidente”, pois tudo estava devidamente autorizado. 

Tudo isto tem muito que se lhe diga. Em primeiro lugar, estranho o desprezo do nosso Presidente da República. Esperava-se, no mínimo, uma inspeção in loco para apreciar e arrolar os danos, entre os mergulhos que tem dado pelos Açores, surpreendendo, mais uma vez, com o dom da ubiquidade a que já nos vem habituando. Mas, em bom rigor, o verdadeiro ausente é o Ministério da Cultura que, perante o sucedido, ainda nada fez ou disse nem sobre possíveis reações judiciais contra a produtora, nem sobre a responsabilização da direção do monumento. O BE foi, de resto, o único partido a pressionar o ministro, requerendo que seja ouvido no parlamento. Por fim, sendo verdade que tudo foi autorizado, se, por um lado, não deve espantar a falta de intuição artística – um atributo que, mesmo no cinema, é exclusivo apenas de alguns, entre eles um dos “nossos” – de um realizador como Terry Gilliam, por outro lado, o que é verdadeiramente lamentável é que as autoridades a quem compete supervisionar a conservação do nosso património não o façam com o dever, a responsabilidade e o zelo de um país que tem 22 bens candidatos a património mundial da Unesco. 

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“O Convento de Cristo é um embaraço grande para o realizador” – esta frase, de Manoel de Oliveira, não deve ser mal interpretada. 


Explico porquê: o realizador centenário, que entretanto nos deixou, referia-se numa homenagem em 2009, na cidade de Tomar, aos obstáculos que a beleza e riqueza do monumento, do ponto de vista arquitetónico, colocavam às escolhas do cineasta durante a rodagem d’“O Quinto Império”, filmado em 2004, naquele que é um monumento classificado como património da humanidade. O cineasta explicava então as dificuldades em escolher os melhores ângulos e as melhores perspetivas, “onde pôr a câmara”, como dizia, tantas eram as escadas, corredores, recantos e pátios, confessando que com frequência recorria à sua intuição artística. 

Ocorreram-me estas considerações de Manoel de Oliveira, e da sensibilidade e respeito subjacentes, a propósito do programa “Sexta às 9”, da RTP1, que na passada sexta-feira exibiu uma reportagem sobre danos recentemente causados naquele mesmo espaço por gente que se diz fazer cinema. Ali se relatava que o convento foi arrendado, por três semanas, por 172 mil euros, para a rodagem do filme “O Homem que Matou D. Quixote”, do realizador Terry Gilliam. Ao que parece, a produção do filme fez uma fogueira de 20 metros, utilizando dezenas de bilhas de gás, cortou árvores, partiu telhas e pedras centenárias. A Direção-Geral do Património, procurando sacudir a água do capote, já se pronunciou, justificando que a situação terá sido apenas um acidente. Já a produtora do filme garantiu a legalidade do “acidente”, pois tudo estava devidamente autorizado. 

Tudo isto tem muito que se lhe diga. Em primeiro lugar, estranho o desprezo do nosso Presidente da República. Esperava-se, no mínimo, uma inspeção in loco para apreciar e arrolar os danos, entre os mergulhos que tem dado pelos Açores, surpreendendo, mais uma vez, com o dom da ubiquidade a que já nos vem habituando. Mas, em bom rigor, o verdadeiro ausente é o Ministério da Cultura que, perante o sucedido, ainda nada fez ou disse nem sobre possíveis reações judiciais contra a produtora, nem sobre a responsabilização da direção do monumento. O BE foi, de resto, o único partido a pressionar o ministro, requerendo que seja ouvido no parlamento. Por fim, sendo verdade que tudo foi autorizado, se, por um lado, não deve espantar a falta de intuição artística – um atributo que, mesmo no cinema, é exclusivo apenas de alguns, entre eles um dos “nossos” – de um realizador como Terry Gilliam, por outro lado, o que é verdadeiramente lamentável é que as autoridades a quem compete supervisionar a conservação do nosso património não o façam com o dever, a responsabilidade e o zelo de um país que tem 22 bens candidatos a património mundial da Unesco. 

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