Relação sino-europeia: a resposta ao isolacionismo americano?


A parceria estratégica com a China é um processo, não um fim em si. As relações têm de ser incrementadas, consubstanciadas, e os diferendos – resultantes de sistemas políticos e de valores diferentes – no seio das mesmas têm de ser abertamente abordados


1) Em 2004, David Shambaugh escrevia, na “Current History”, que o relacionamento entre a China e a União Europeia estava a evoluir para um “eixo emergente que, com o tempo, será uma fonte de estabilidade num mundo volátil”. O então presidente da Comissão Europeia, Romano Prodi, recusava aquilo a que alguns chamavam “trade love affair”, garantindo que “se não estamos perante um casamento, trata-se pelo menos de um noivado muito sério”. Noivado que evoluiu para um “casamento por conveniência” cujo padrinho é o presidente norte-americano. Se dúvidas ainda houvesse quanto à impreparação ou o perigo que Donald Trump e o seu “America first” representam para o mundo livre, estas dissiparam-se com o fracasso retumbante da cimeira do G7.

2) Para a Europa, isso significa – além de ter de fazer mais pela sua segurança neste novo mundo instável – aprofundar parcerias estratégicas com as restantes potências. Descartando, por razões conjunturais óbvias, a Rússia, a Europa deve olhar para a China e para uma relação cuja força motriz deixou de ser somente o comércio e passa cada vez mais pela convergência de interesses e considerações de ordem estratégica. Apesar de nem tudo ser um mar de rosas nesta relação, com as divergências no que toca aos direitos humanos à cabeça, há nela algo seminal: China e União Europeia consideram que os desafios que se colocam à comunidade internacional – crises regionais, terrorismo, alterações climáticas – exigem um multilateralismo efetivo.

3) A história da relação entre a China e a Europa remonta ao século xiii e às viagens do comerciante veneziano Marco Polo, que seguiu pela Rota da Seda, pela Ásia Central, rumo ao país a que chamou Cataio, que corresponde ao norte da China. Séculos mais tarde, os navegadores portugueses, movidos por razões comerciais, lançaram amarras no sul da China, estabelecendo-se em Macau. De então para cá, a interação entre chineses e europeus assumiu contornos complexos, particularmente a partir do século xix, com as Guerras do Ópio e dos chamados “Tratados Desiguais”, assinados entre potências europeias e uma China da dinastia Qing enfraquecida. A partir de 1975, a República Popular da China e a Comunidade Económica Europeia estabeleceram oficialmente relações diplomáticas – antes, a China havia normalizado as suas relações com os Estados Unidos e recuperado o seu assento na ONU –, encetando uma nova era. Tal como nos primeiros contactos, seria o comércio o fator mais visível deste relacionamento. Todavia, as relações sino-europeias evoluíram para muito mais que isso. São multifacetadas, complementares, competitivas e, sobretudo, interdependentes.

4) Libertas da divisão bipolar na política internacional, quer a China quer a Europa aproveitaram a oportunidade para avançar para além das relações económicas e comerciais, “numa altura em que paz e desenvolvimento se tornaram os dois temas principais da agenda internacional”, como salienta o analista Xing Hua. Em 1994, Jiang Zemin estabeleceria os “Quatro Princípios para o Desenvolvimento das Relações entre a China e a Europa Ocidental”, documento que define os pilares para um entendimento sino-europeu no final do século xx e início do século xxi. “Para Pequim, as pedras de toque deviam ser o respeito mútuo, a busca de uma base comum de diálogo, esbater as diferenças e a resolução de conflitos através de consultas e cooperação”, nota José Carlos Matias dos Santos. Um ano antes, a Comissão Europeia havia lançado um documento estratégico, “Towards a New Asia Strategy”, no qual dedicou especial atenção à China. O objetivo da UE era, nessa altura, sobretudo aprofundar a participação da China no sistema internacional e promover a emergência deste país como uma potência responsável que seguisse as normas da comunidade internacional.

5) Em 1995, no documento estratégico “A Long Term Policy for the Relations between China and Europe”, Bruxelas reconhece a necessidade de ter uma relação estável e sólida com a China, sublinhando que esta é importante para a Europa em várias áreas, nomeadamente ao nível de questões de segurança regional e global, proteção ambiental, direitos humanos, luta contra a sida, desenvolvimento científico e tecnológico, sociedade da informação e estabilidade económica global. Na mesma linha, em 1998, a Comissão divulgou um novo documento intitulado “Building a Comprehensive Partnership with China”, em que a parceria com a China era elevada a um novo patamar. Consagra-se aqui que este país seja um parte ativa no sistema internacional e que consiga fazer uma transição bem-sucedida para uma sociedade aberta, com um “Estado de direito” forte em que os direitos humanos sejam respeitados. Três anos depois, a China aderia à Organização Mundial do Comércio, num processo em que a UE teve um papel importante. Para trás ficava o clima de desconforto resultante da repressão sobre os estudantes na Praça de Tiananmen e quaisquer questões coloniais com países europeus, após a entrega de Hong Kong em 1997 e de Macau em 1999.

6) A parceria estratégica com a China é um processo, não um fim em si. As relações têm de ser incrementadas, consubstanciadas, e os diferendos – resultantes de sistemas políticos e de valores diferentes – no seio das mesmas têm de ser abertamente abordados. Dessa capacidade depende a frágil estabilidade do mundo atual. Não é pouco.

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