Tiago Mota Saraiva, neste jornal e no seu artigo de 29/5/2017, discorre sobre o denominado fenómeno do “afidalgamento urbano”, o que faz partindo da etimologia que propõe do termo “gentrification” e que explica, para o que lhe interessa, ter origem na concepção da socióloga marxista Ruth Glass: os “processos de saída forçada da classe operária de bairros do centro de Londres e a sua substituição pela classe média e alta”.
Defende que fenómeno idêntico (e necessariamente violento) estará a expulsar os “pobres” do centro das cidades portuguesas” e que, feito o lucro e a sua acumulação, passará depois a haver “tecido urbano que ficará vazio de conteúdos e de pessoas”.
Ao que parece, o autor aponta como sendo as medidas do tempo da troika aquelas que mais fomentaram o referido processo, atenta a conhecida “agenda neoliberal”.
Acontece que o referido artigo, na parte em que pretende aplicar o conceito de “afidalgamento urbano” como o define, pelo menos, a Lisboa, é, no mínimo, um exercício de alienação.
Não sendo exaustivo, mas certamente sem errar por muito, os bairros hoje mais procurados no centro da cidade a que o autor pode referir-se são aqueles a que veio a corresponder a nova freguesia de Santa Maria Maior, que inclui os bairros históricos de Alfama, Baixa, Chiado, Castelo e Mouraria, e que corresponde às antigas freguesias da Madalena, Mártires, Sacramento, Santa Justa, Santiago, Santo Estêvão, São Cristóvão e São Lourenço, São Miguel, São Nicolau, Sé e Socorro. Segundo o seu site, à referida freguesia corresponde 2% do território da cidade de Lisboa e 5% do total dos seus edifícios.
Será aqui, pois, que a chegada dos “fidalgos”, motivada pelos acumuladores de lucro do pós-troika, tem de estar a empurrar, substituindo-as, as populações de menores recursos aí residentes.
Identificado quod erat demonstrandum, talvez faça sentido agora – para nos dar a dimensão histórica – socorrermo-nos (entre outros possíveis) do artigo do jornal “Público” de 20 de Agosto de 2001 que dá conta dos resultados do censo de 2001, também disponível online, onde o então presidente da Junta de Freguesia de S. Nicolau, aí citado, referia relativamente a essa então maior freguesia da Baixa que “em 1959 havia cerca de 40 mil habitantes e hoje não chegam aos dois mil”.
Mas mais: se consultarmos os números que o INE publica online – apurados, estes, com base nos censos de 2001 e 2011 – para analisarmos, baseados em factos e não em perceções mais ou menos politizadas, a evolução na década seguinte, verifica-se que essa freguesia de São Nicolau tinha, em 2001, 1175 habitantes e que em 2011 foram recenseados 1231, um crescimento efetivo de 4,77% que equivale a 56 pessoas, ou seja, cerca de 5% de quase nada!
No mesmo período não se julgue que a tendência foi invertida Lisboa fora. O Castelo perdeu 39,52% de habitantes; o Sacramento, 15,68%; Santa Catarina, destas freguesias a mais populosa em 2001 perdeu 8,94%; a Sé, 21,55%; Santiago, 27,77%; São Cristóvão e São Lourenço, 16,81%; São Miguel, 13,84%; e Santo Estêvão, 26,18%.
Na tal década anterior a esta, refere o “Público”: “As freguesias que englobam estas duas zonas – Madalena, S. Cristóvão, Santa Justa, Encarnação, Sacramento e Mártires – perderam mais de metade da sua população nos últimos 20 anos, passando de 15 500 habitantes em 1981 para cerca de 7200 em 2001”, acrescentando nós que os números em 2011 nos dão pouco menos de 6 mil habitantes em 2011.
Até ao fenómeno generalizado das medidas tomadas na pendência do resgate que fizeram o turismo de habitação, e não só, invadir o deserto da Baixa, não há números publicados, mas certamente que os mais de 55 mil habitantes que se perderam ao longo dos anos não voltaram em massa a partir de 2011 para serem agora expulsos violentamente.
Perante esta realidade, e por muito apelativo que seja usar conceitos marxistas importados, por várias razões e, porventura, falta de sorte, o centro de Londres e a Baixa de Lisboa não se equivalem.
Cem anos de congelamento de rendas, que o autor omite, entre outros disparates (violentos) contra o edificado e os seus donos, deixaram o centro da cidade deserto, órfão de dezenas de milhares de habitantes, com milhares de casas livres e devolutas e (arrisco alguns milhares de) prédios a precisar de reabilitação.
Não seria, por isso, preciso expulsar nenhum pobre (dos poucos que não se foram) para os “fidalgos” ocuparem o centro da cidade, já despovoado muito antes de eles chegarem. Bastaram as sucessivas políticas de arrendamento, das que Tiago Mota Saraiva defende, e o costumado ódio ao mercado, ao lucro e à remuneração do capital que o artigo destila, e que nos trouxe às décadas de êxodo sucessivo e à quase pré-ruína do edificado, por ser improdutivo qualquer investimento no mesmo, tolhido pelo confisco arrendatício.
Por isso, mesmo aceitando o conceito na versão ortodoxa de que a “afidalgamento urbano” consiste na tal expulsão das classes mais baixas e a ocupação do tecido urbano por outras classes financeiramente mais poderosas, tem de concluir-se que é impossível expulsar com violência quem lá não está e que, contrariamente à confabulação criada, este fenómeno é que inverteu que este tecido urbano continuasse vazio de conteúdos e de pessoas como estava, como o próximo censo demonstrará.
Advogado na norma8advogados
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Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico
Escreve à quinta-feira