Sim, Dantas era Júlio. Júlio Dantas. Mas é amiúde referido como “o Dantas”, assim sem mais, desligado do nome próprio, numa familiaridade de galhofa que não encontra correspondência no trato próximo com a sua extensa tábua bibliográfica, que inclui poesia, teatro, romance, conto, crónica e ensaio e peças de oratória impecável (“Tribuna”, 1960).
O preconceito que a geração de Orpheu produziu e que alastrou, como erva daninha, às gerações seguintes, tem-nos impedido de ler e apreciar a sua qualidade literária. Veja-se, por exemplo, a abertura do célebre romance “A Severa”, onde nos descreve uma personagem que se diria saída da galeria de Aquilino Ribeiro: “Decididamente, o Romão alquilé, com o seu carão brunido do sol, achamboirado e alegre, a jaleca de astracan a enxalmar-lhe o arcaboiço, a espora tilintando no sapatão de bezerro, todo o seu ar de alentejano ricaço, testudo como os asnos de Alvalade e torto como as azinheiras da sua terra – decididamente, ia eu dizendo, o Romão alquilé era o mais patego dos troquilhas de Portugal.”
Na sua obra podem encontrar-se variadíssimos passos que, como este, fariam boa figura num desses torneios de escrita criativa, organizados muitas vezes por figuras que de escritores terão apenas a vontade de o ser. Não era o caso de Dantas, que não foi um autor menor, sem talento, ignorante ou desprezível, mero produtor de “dramas de gelatina”. Foi um grande escritor, com obra feita a golpes de trabalho e talento versátil. Lançados ao papel os primeiros poemas, em 1897, não haveria de querer publicá-los na Chiado Editora: sabia distinguir uma boa oportunidade do beijo da morte. Nos seus tempos de juventude, de impetuosidade iconoclasta, talvez ousasse mesmo brindar esse empresário de vistas largas e bolsos fundos que é Gonçalo Martins, o homem que dirige a Chiado, com a irreverência de um manguito.
O rol de actividades intelectuais que o absorveram, as importantes funções que desempenhou, a lista de cargos de relevo que assumiu não são para fôlegos fracos. Escritor, jornalista, conferencista, académico, diplomata, deputado, ministro, figura de proa das instituições, da política, da literatura, do teatro, da sociedade da época, referência para o Prémio Nobel e para a Presidência da República, Júlio Dantas tocava de facto muitos burros, mas nenhum deixava para trás. O mesmo não poderá dizer-se hoje de alguns que, no acúmulo de cargos que desempenham, no desejo de abraçar de ponta a ponta o nosso meio literário, deixam cair compromissos, escorregar banalidades, escapar entrevistas ocas como a que, recentemente, Pedro Mexia deu ao “Diário de Notícias”.
O autor de “A Ceia dos Cardeais” (1902), o seu maior êxito e um dos maiores de toda a história do nosso teatro, teve muitas contrariedades e incómodos, mas não o da caspa na gola da casaca, que virava com muita agilidade, numa estratégia de oportunismo (que não lhe diminui o valor literário) sempre em actualização, como mostram alguns outdoors das autárquicas que se aproximam, a exibirem figuras que transitaram da Direita para a Esquerda sem sequer se dar ao trabalho de trocar de fatiota.
Com uma cultura humanística das mais sólidas do seu tempo, Dantas era, na sua época, além de um exemplo de competência, um modelo de apuro e de elegância – chapéu, fato à medida e gravata, água-de-colónia, anel de safira e delicadezas para distribuir. Reformado, por decreto, da carreira militar aos 38 anos por ter sido julgado “incapaz de todo o serviço pela Junta Hospitalar de Inspecção”, cedo despiu o uniforme de capitão com que, do alto do seu cavalo, gostava de frequentar o Chiado, onde se terá cruzado com um Almada em pêlo e poses de discóbolo. Manda a verdade dizer que usava realmente ceroulas de malha (e, o que é pior, no verão) como Almada proclamou e Marcelo Caetano pôde verificar aquando de uma viagem ao Brasil em que ambos partilharam um camarote.
Foi médico por formação e escritor por vocação. Não era propriamente aquilo a que se possa chamar um ás da medicina, que nunca chegou a exercer plenamente. O seu diagnóstico mais conhecido teve como destinatário a rapaziada do Orpheu e tinha título e tudo, a encabeçar um artigo de jornal: “Poetas-Paranóicos”. Foi também a sua sentença de morte, já que inspirou a Almada o ultra-famoso Manifesto Anti-Dantas, publicado em 1915, vendido pela módica quantia de cem réis e cuja primeira edição, feita em papel de embrulho, terá ajudado a esgotar, numa acelerada peregrinação pelas livrarias de Lisboa. “Bem feito e muito português” – no comentário de Amadeu de Souza-Cardoso. Dantas não responde à investida, mantendo a postura oficiosa que o caracterizava: “Não há nada que valha a dignidade do silêncio.”
Sim, Dantas era Júlio. Quando pronunciamos o seu nome, mais de cem anos depois do Manifesto e 55 após a sua morte, ergue-se logo um boneco, sem nervo nem estrutura intelectual, saído do molde onde Almada verteu, além de uma irreverência nunca vista e muita exuberância exclamativa, o veneno destrutivo das fricções, preparado por quem não pode ou não quer aguardar vez nem marcar passo. Nesse boneco, desagradável ao derradeiro grau, repulsivo, senão mesmo hediondo, andamos impiedosamente a malhar há mais de um século, com alguns períodos de intermitência, que certamente não coincidem nem com a exímia leitura que do “Manifesto” fez o terrível Mário Viegas, transmitida na RTP (e com milhares de visualizações no Youtube), tão-pouco com as comemorações dos 100 anos da revista Orpheu ou mesmo com a mostra retrospectiva da Fundação Gulbenkian – “José de Almada Negreiros: uma maneira de ser moderno” -, oportunidade para celebrar o grande modernista e, claro, havendo oportunidade, malhar no “mais tradicional dos literatos portugueses”, porque há sempre aqueles que de tudo fazem frincha para se rir, ignorando, por exemplo, o facto de Dantas se ter oposto ao grupo de radicais modernaços que pretendia retirar de uma livraria do Chiado exemplares das Canções de António Botto.
Diz o adágio popular que enquanto o pau vai e vem folgam as costas, mas a verdade é que, neste caso, de cada vez que o pau assenta nas costas (largas) de Júlio Dantas o efeito produzido é devastador e cada vez mais difícil senão mesmo impossível de reparar. Sempre que Almada emerge na cena cultural ou surge um manifesto similar, lá vem à cabeça o boneco, espécie de espantalho ridículo capaz de afugentar leitores possivelmente interessados numa obra aberta à experimentação e cuja qualidade literária nomes como Vitorino Nemésio (”não me cansarei de o elogiar!”) ou David Mourão-Ferreira sublinharam.
O modelo social, político e cultural que Dantas representava, e que, longe de se ter extinguido, tem os seus seguidores, com menos competência, cultura humanística menos sólida e, quiçá, maior curvatura do lombo, tornaram-no num símbolo acabado de toda uma geração de intelectuais instalados. E também num alvo vivo que atraia como um íman. Ainda não tinha completado 40 anos e já Almada o queria liquidar. Aquele estalido forte que fulminou de espanto o país, semelhante a um disparo – PUM! – continua a ressoar e a arranhar os tímpanos de quem é sensível a atentados pessoais e assassinatos de carácter. Como se Júlio Dantas tivesse casado com a Mediocridade, no papel passado que é o próprio Manifesto, e numa daquelas bodas à moda antiga, sem a possibilidade prática do divórcio, perante a gargalha estridente e sempre insatisfeita de Almada, que em vez de se extinguir com as décadas, parece continuar a ecoar além-túmulo, a confirmar a indissolubilidade da união, que na verdade foi uma trama. A imagem literária de Dantas continua a ser recebida com a desconfiança de quem suspeita estar perante o empedernido e a nulidade. Mentira.