Para muitos, Cannes recebeu a potencial Palma de Ouro com o estrondo de uma bomba. Até porque é isso que sucede em In The Fade, seguramente o filme mais perturbador que Cannes viu este ano. Assente a poeira sobre a bomba que mata o marido e filho da personagem de Diane Kruger, fica no ar a pergunta: o que faria se os seus entes queridos tivessem sido vítimas de um atentado terrorista? A personagem de Kruger responde com a Lei de Talião, optando por uma versão alemã de Uma Thurman em Kill Bill. Só que em vez de usar um sabre, usa uma bomba de pregos semelhante à que levou o marido tuco e o filho de dois anos.
O problema é que apesar deste filme aflorar a questão do extremismo nazi na Alemanha, em particular com os assassínios do grupo neonazi NSU, em 2011, será inevitável estender a questão a todo o extremismo e procurar as raízes dos gestos radicais de martírio. Como o de Manchester.
O filme divide-se em três partes – como uma tragédia grega se tratasse – e até em três géneros diferentes, como que a procurar uma lógica de equação, começando por ‘A Família’, que nos mostra a ligação desta alemã a casar-se com um turco tatuado (Numan Acar) ainda antes de sair da prisão, por tráfico de droga, evidenciando Kruger no seu melhor papel de sempre; evolui depois para a dor da perda e o processo judicial que procura emular os eventos de 2011, com ‘Justiça’; por fim, ‘O Mar’, na procura de uma solução para a insatisfação diante o desfecho judicial.
Parte drama familiar, parte filme de barra de tribunal, parte revenge movie, In the Fade acaba até por seguir uma via algo mainstream. Até porque o tal desenho esquemático inicial acaba por afunilar num leque demasiado limitado de desfecho. Ou seja, conseguirá ou não a personagem de Kruger consumar a vingança? Ainda assim, os jornalistas presentes na matinal sessão de imprensa não pouparam elogios. Mas houve também quem demonizasse o filme.
No penúltimo dia vimos ainda L’Amant Double, a incursão do enfant terrible François Ozon no território de Hitchcock, para nos dar uma perversa visão de pulsação erótica, temperada com intrigantes sessões de terapia e sonhos. A atraente Marine Vacth regressa a Ozon depois de Jovem e Bela (2013), para um exercício que apelidaríamos de absorvente sedução. Isto assim que Chloé, assim se chama a sua personagem, procura lidar com os seus problemas psicológicos e se entrega de corpo e alma ao psicanalista servido com segurança por Jérémie Renier. Só que no meio desta tórrida sedução, o ciúme instala-se quando percebe que existe a possibilidade do seu amante ter um irmão gémeo. Daqui para a frente, começa então o jogo entre Ozon e o espetador, uma espécie de gato e rato (e, sim, existem vários gatos no filme), num crescendo que celebra a afinidade com De Palma.
No entanto, a provocação suprema de Ozon pode até cristalizar-se no momento inicial em que o interior da vagina de Chloé é fundido no seu olhar verde. Assim mesmo. Uma imagem que arrancou da plateia um rasgado aplauso em ritmo de gargalhada. É assim Ozon. Provocador e rigoroso em doses iguais.
Por fim, refira-se o filme do português Pedro Pinto, A Fábrica de Nada. Exibido numa sessão especial da Quinzena dos Realizadores, ilustra a habilidosa solução social e empresarial para uma fábrica que é tomada em autogestão como forma de os trabalhadores assegurarem os seus postos de trabalho. Uma pequena preciosidade que se desenrola ao longo de três horas que se veem com gosto.