Cultura da Violação.“Mexeu com uma, mexeu com todas”

Cultura da Violação.“Mexeu com uma, mexeu com todas”


Várias associações organizam amanhã protestos contra a cultura de violação. Imagens da Queima das Fitas reacenderam o debate mas também preocupação de quem lida com mulheres vítimas de abusos e de preconceito


“A primeira vez que me lembro de ser assediada por um adulto com a consciência de que algo estava errado foi aos 11 anos, a partir daí nunca mais parou. Na faculdade, um professor insinuou que eu passaria à disciplina se fosse durante a noite ao gabinete dele. Como não fui, adivinhem a nota que tive”, conta Francisca (nome fictício), de 31 anos. Nos últimos dias, o i conversou com mulheres nas ruas e nas redes sociais para tentar perceber que experiências de assédio guardam na memória. O mote foi a manifestação contra a cultura da violação que vai ter lugar amanhã em vários pontos do país. Na hora de explicar o que pretendem denunciar, os dinamizadores são unânimes: os abusos não são só físicos, mas também culturais. 

Francisca e outras doze mulheres deram o seu testemunho, sob anonimato, relatos na primeira pessoa que pode ler nas próximas páginas. “As situações são várias e constantes, não todos os anos, mas todas as semanas. Já me seguiram na rua, já me apalparam no metro, já se roçaram com o sexo de fora, já me insultaram por não estar interessada, mas sempre que falo disto com amigos homens, jovens ou adultos, tentam sempre garantir-me que estas coisas não acontecem cá. Por outro lado, falo com qualquer amiga e todas elas foram vítimas de assédio em crianças ou adolescentes. E só hoje falam no assunto porque estamos cada vez mais ativas e seguras de que é preciso fazer alguma coisa. Agora vejo-me a temer pelas minhas filhas, lembro-me de desejar com toda a força que nascessem homens. Como é possível tanto silêncio?”.

Diana, 24 anos também não entende como é que tanta gente ignora o assunto "não gosto de pensar no meu pai como machista, mas sei que ele não tem consciência de 99% das coisas pelas quais nós, mulheres, passamos. Há uns meses, no inverno, estávamos a falar sobre a lei do piropo e outros assuntos relacionados, e ele revoltou-se comigo, enquanto homem, por eu defender uma lei que "limitasse a liberdade de expressão dos homens" no dia-a-dia. Fiquei estupefacta. Expliquei-lhe que ele tem uma mãe, três irmãs, uma ex-mulher e um batalhão de ex-namoradas que já passaram por isso mil vezes na vida e que ainda passam, diariamente. Que não é elogioso, que não é agradável. E lembro-me de pensar "não, isto não vai lá assim. Ele tem de perceber o que eu senti, o nojo que me invadiu quando me abordaram pela primeira vez. A mim, enquanto filha dele, quando ainda nem tinha idade para ser vista como mulher, para ser sexualizada". E contei-lhe tudo, com todos os pormenores que consegui. Tinha 11 anos quando se "meteram comigo" na rua pela primeira vez".

Pensa-se que a expressão “rape culture” (cultura da violação) tenha surgido nos anos 70 nos Estados Unidos da América e tendo sido dado a conhecer pelo movimento feminista. Já nos anos 80, a associação canadiana de proteção de vítimas de assédio sexual WAVAW (Mulheres Contra a Violência Contra Mulheres) definiu esta ameaça como  “todo o conjunto de ações e normas sociais que levam à culpabilização da vítima e do assédio sexual normativo e consequente violência sexual masculina”. 

Em Portugal, o assunto tornou-se incontornável nas últimas semanas, com o debate gerado em torno de imagens de cenas de sexo captadas nas Queimas das Fitas e divulgadas sem consentimento dos seus protagonistas. 

A Rede 8 de Março é uma das associações envolvidas na organização das manifestações, que contam com o apoio de 35 associações unidas sob o lema “Mexeu com uma, mexeu com todas”. A “cultura da violação” que pretendem denunciar inclui não só o crime sexual consumado mas, também, toda “a sexualização e objetificação da mulher, assim como o assédio e a normalidade como tudo isto é visto pela nossa sociedade”, explica uma das organizadoras, Joana Amaral Grilo. Andrea Peniche, do Porto, é uma das dinamizadoras da rede ativista Parar o Machismo, Construir a Igualdade e não tem dúvidas de que esta realidade condiciona, e muito, a vida das mulheres. “A nossa experiência diz-nos que, sempre que o tema é debatido, há muitas pessoas com histórias para contar, o que revela que a violência de género não é uma exceção no quotidiano das mulheres, mas uma vivência demasiado presente”. 

Andrea Peniche sublinha que a cultura da violação “é aquela que aceita que os desejos de um homem se podem sobrepor ao “não” de uma mulher. É uma cultura que concebe as mulheres como objetos sexuais e de consumo masculino e não como seres autodeterminados”. Uma cultura “que afirma que os homens não são capazes de controlar os seus impulsos e que, por isso, desculpa os comportamentos agressivos e pretende fazer passar por natural a violência”, continua. “Isto está muito entranhado na sociedade portuguesa. Repare-se que sempre que há relato de uma agressão, as primeiras questões que são colocadas são: o que trazia a mulher vestido? Que horas eram? Onde ocorreu a agressão? Ou seja, a vítima é responsabilizada pela agressão que padeceu. Transformar a vítima em culpada e procurar atenuantes para um comportamento que é crime é cultura da violação”.

Combater a normalização

Joana Amaral Grilo, de 29 anos, explica que o movimento por detrás dos protestos surgiu sobretudo como reação ao facto de a sociedade portuguesa e comunicação social agirem “como se fosse normal” situações como a que se passou no autocarro da Queima das Fitas do Porto, em um rapaz masturbava uma rapariga e ambos foram filmados e aplaudidos por um grupo de jovens. 

Joana considera “perturbador” que apenas se tenha reagido ao ato da partilha do vídeo e não ao que estava a ser filmado. “Não se critica o ato em si, não se abre o precedente que pode estar errado, e quando o fazem é a culpabilizar a vítima. Querem convencer-nos que só porque uma mulher se embebeda, este tipo de consequência será normal, sempre com o discurso em que a vítima é a culpada”. 

Ontem, no “Observador”, a cronista e professora universitária Laurinda Alves usou esse argumento. “Estas raparigas andam na universidade, mas não sabem básicos essenciais sobre a Humanidade. Não só aceitam as regras do jogo, como estimulam a perversidade dos homens, entregando-se a estas supostas brincadeiras com leviandade.(…) Neste tempo, em que são filhos, entram no jogo e estabelecem os seus valores e preços, mas será que gostariam que a sua filha se prostituísse e fosse filmada enquanto se prostituía? E será que não se angustiariam com o facto de essas imagens ficarem para sempre na net?”. 

O texto não caiu bem a quem está a organizar o protesto. Beatriz, jovem ativista pela igualdade de direitos entre homens e mulheres no Porto, defende que são estas intervenções na comunicação social que tornam urgente o país acordar. “É inacreditável que um jornal reproduza o mesmo tipo de discurso que conhecemos das caixas de comentários das redes sociais, sem filtros, um discurso tão conservador e insultuoso que é surreal que ainda exista em 2017. Já não basta estarem os adolescentes idiotas a fazer bullying à rapariga, ainda temos a imprensa a ajudar à festa”.

Segundo maior estudo feito no país nos últimos tempos sobre esta problemática, a experiência das mulheres com o assédio sexual começa cedo e prolonga-se ao longo da vida. O projeto “Assédio Sexual e Moral no Local de Trabalho em Portugal”, desenvolvido pelo Centro Interdisciplinar de Estudos de Género, do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, e da responsabilidade da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego apurou, em 2015  que 12,6% da população ativa portuguesa já experienciou, pelo menos uma vez, um episódio de assédio sexual no local de trabalho. Tendo em conta que o país tem cerca de cinco milhões de pessoas empregadas, isto pode significar que mais de 650 mil pessoas já passaram por uma situação de assédio, sendo que as mulheres são as principais vítimas. 

A manifestação contra a cultura da violação acontecerá no Porto, às 18 horas,  com ponto de encontro marcado para a Praça dos Leões. Em Lisboa, a concentração é também às 18 horas na Praça Luís de Camões. Em Braga, o protesto começará às 18h30, na Avenida Central, e em Coimbra às 21 horas no Largo Dom Dinis.

 

Números e factos

124%
Crimes sexuais contra menores aumentaram 124% entre setembro de 2014 e 2016 no distrito de Lisboa

35%
Das mulheres em todo o mundo sofreram de violência física ou sexual por parte de um não-parceiro pelo menos uma vez

Assédio
Comportamento verbal, não verbal ou físico com o intuito ou o efeito de perturbar e afetar a dignidade

43%
Dos estudantes do secundário nos EUA relataram, em 2016, terem sido vítimas de assédio sexual durante o ano anterior 

Feminismo
Movimentos e filosofias com o objetivo de divulgar a igualdade de géneros e emponderamento feminino 

70%
Segundo a ONU, 70% das mulheres em todo mundo já sofreram violência física ou sexual de um parceiro íntimo 

81,9%
Maioria das vítimas de crime em Portugal registadas em 2016 pela Associação de Apoio à Vítima são mulheres

42,6%
Quatro em cada dez vítimas de crime sexual registadas pela APAV eram crianças ou jovens e 46,5% estudantes

26,3%
Mais de um quarto dos crimes registados pela APAV em 2016 foram cometidos por cônjugues

329
Vítimas de crimes sexuais que procuraram a APAV em 2016.

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