Eu e as minhas irmãs fomos educadas a sabermos ir ao café, ao hipermercado ou a uma loja sem pedirmos o que quer que fosse aos meus pais. Desde miúdas que soubemos o valor das coisas, percebíamos que o dinheiro vinha do trabalho difícil dos meus pais e que era mais bonito esperar que eles oferecessem quando e se pudessem. Saberia muito melhor um gelado oferecido do que pedido. Não fomos as filhas perfeitas (isso esteve tão longe de acontecer como eu ser um dia internada com anorexia) mas, neste campo, eles terão de concordar que as suas três filhas se portaram exemplarmente.
Cresci sem chorar por umas botas novas e a aceitar as horrorosas botas ortopédicas que era obrigada a usar. Com esta pronúncia carregada, a usar botas ortopédicas no inverno e no verão, convenhamos: não entrei para o quinto ano escolar com o pé direito. Foi com o esquerdo e estava torto. De qualquer forma, era uma miúda bem resolvida e com autoestima suficiente para me declarar aos rapazes mais giros da escola. Nunca me afetou ter menos coisas que os outros miúdos porque me foi sempre ensinado a ser grata pelo que havia.
E isso era o suficiente para perceber que tinha o bastante.
Levei a coisa tão a sério que, quando me foi dada a oportunidade legítima para pedir alguma coisa, não o fiz: aos 13 anos, quando o cancro apareceu, esperar-se- -ia que suplicasse ao Deus em que acreditava que me salvasse, mas não foi isso que aconteceu. Achei que já O tinha chateado demasiadas vezes com os meus outros pedidos recorrentes: “por favor, Deus, faz com que não haja teste de Matemática”; “por favor, Deus, inventa aí um sismo na hora do teste de Matemática”; “por favor, Deus, acaba com a Matemática”. Gastei todos os meus créditos com a Matemática e, quando chegou a altura de pedir a cura, fiquei com vergonha e deixei-me estar.
Tenho de reconhecer que, para uma menina de 13 anos, era incrível o tamanho da minha fé. Continuei a ouvir a minha intuição (que cresceu nesta altura), a rezar, a agradecer as coisas boas do dia e a reclamar com Deus quando as coisas não estavam a melhorar para o meu lado. Mas pedir a cura, nunca o fiz. Na verdade, talvez não o tenha feito porque nunca duvidei de que ia ficar bem e, por isso, não fazia sentido pedir algo que sentia que já tinha. Não sei. Só sei que nunca pedi a Deus que me curasse, e olhem que eu vivo perto de Fátima… tinha prioridade e tudo. Não o fiz mas, confesso, tive quem o fizesse por mim. A sensação de sabermos que há tanta, tanta gente a torcer para que fiquemos cá mais tempo a pagar IMI é curativa. Não somos o centro do mundo, sabemos isso, mas somos o centro do mundo de algumas pessoas. E sentires-te vaidosa por isso, neste contexto, acho que não faz mal.
Uma vez tínhamos visitas em casa e o meu pai contava, emocionado:
– Quando a Marine estava doente, estive no Santuário de Fátima a rezar desesperadamente, enquanto dava a volta à capelinha de joelhos… e, para mim, foi isso que a salvou!
Até que a partilha foi interrompida pela espontaneidade deliciosa da minha mãe:
– Porra, tu foste UMA vez a Fátima. Eu andei UM ano a caminhar com ela para Coimbra… e quem a salvou foste tu?!
Rimos que nem perdidos (resolvemos as nossas conversas e os nossos problemas assim) e chegámos a um consenso: afinal, foi tudo preciso. Porque tudo é preciso. Os tratamentos difíceis, a fé do meu pai, o humor da minha mãe, a sorte que apareceu, o amor das minhas irmãs, os caminhos para Coimbra. E as voltas dadas à capelinha. Foi tudo preciso.
O cancro passou. A fé manteve-se. Não por Deus me ter salvo (mas fiquei agradecida e em dívida por ter dado uma mãozinha), mas porque a fé tem-me dado algo que acho que não poderia encontrar em mais lado nenhum. Aquela coisa tão bonita que se chama esperança. Sabes, Deus, nunca te pedi que me salvasses, mas acabou por acontecer da forma que os meus pais me ensinaram: ao ser grata pelo que havia, percebi que isso era o suficiente para perceber que tinha o bastante.
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