Existem duas maneiras de narrar esta história: usando os números, as estatísticas dos mortos e das vítimas; ou com os sentimentos, usando as palavras. De uma maneira ou de outra, o efeito é o mesmo, a incredulidade e o horror. “Na existência do dia-a-dia, os sentimentos revelam a nossa grandeza e a nossa pequenez”, escreveu António Damásio.
Perdi a conta ao número de livros que li nas últimas décadas sobre as crises africanas e mundiais, guerra, terrorismo, trauma, refugiados. “Blood River”, “Left To Tell”, “Beyond the Trauma Vortex”, “Life after Violence”, “This Way for the Gas, Ladies and Gentlemen”, alguns exemplos da desolação do mundo.
Perdi a conta aos países mais-que-imperfeitos que visitei onde crianças carregam kalashnikovs que lhes dão até aos joelhos como se de brinquedos se tratassem. Perigoso para estrangeiros. Prisão para quem nasce mulher.
Escrevo a poucos dias de uma viagem que me vai levar ao Quénia e ao Bangladesh onde, entre outras coisas, darei aulas sobre “sexual gender based violence”, violência sexual de género. Não há explicação para a barbaridade nem para os relatos da desumanização absoluta.
Nunca me esqueci do que uma miúda sul-sudanesa me contou em 2015. Anotei cada palavra dela, uma por uma, mas não precisava. Tinha uns dentes muito brancos que sobressaiam na pele e no rosto franzino, e uns olhos amendoados, negros, vazios de expressão.
“Dois ou três rapazes agarraram na minha irmã pelos cabelos, atiraram–na para o chão e violaram-na diante dos outros. Havia homens que se masturbavam enquanto viam aquilo, outros batiam no homem que estava em cima da minha irmã e empurravam-no para o lado para ocuparem o seu lugar, outros davam-lhe pontapés na barriga quando ela estava no chão. Não sei quanto tempo durou aquilo. Depois fartaram-se. Eu escapei. Ainda olharam para mim, estavam saciados. Ela morreu ali.” Nem uma lágrima, e uma culpa estranha por estar viva.
Normalmente guardo para mim estas histórias, as mais brutais ou desumanas, mas depois de ler e ver tudo o que está a falhar, na Europa e fora dela, na resposta a estas mulheres vítimas de violência sexual, sinto que tenho de as partilhar. Está tudo definido pelas convenções internacionais e nada ou quase nada a ser aplicado. Não é um medo rarefeito. Acontece todos os dias, às vezes em pacífica aceitação, às vezes às mãos dos que as deviam proteger: guardas do campos, capacetes azuis, trabalhadores humanitários.
Num dia comum em Ajdabya, nor-deste da Líbia, os homens que guardam o campo bebem e fumam canábis. Depois entram no campo e escolhem o troféu que querem. Ramya, uma jovem mulher eritreia, conta num sussurro: “Com uma arma apontada à cabeça, não tens grande hipótese de resistir se queres sobreviver. Fui violada duas vezes por três homens… não queria morrer.”
Numa tarde comum, no campo de refugiados turco de Nizip, na zona de Gaziantep, perto da fronteira com a Síria, a insanidade. Crianças que estiveram a uma nesga da morte são vítimas de abuso. Mais de 30, em 2016, com idades entre os oito e os 12 anos.
Numa noite comum em Dunquerque, no norte da França, mulheres e meninas usam fralda durante a noite para não terem de ir à casa de banho do campo. Adivinham vultos na escuridão. Os Gynécologie sans Frontières falam de crianças de sete e oito anos vítimas de violência sexual. No campo há mais de uma centena de menores não acompanhados.
Estamos a assistir a uma intensificação da violência nos conflitos armados a nível global e, em consequência disso, existem anualmente mais de 65 milhões de deslocados. “Por entre a violência, a brutalidade contra mulheres e raparigas é uma tendência deplorável e persistente”, sublinha o ACNUR.
O que é preciso ser feito? Políticas de migração mais humanas, melhoria das condições nos campos de trânsito ou acolhimento – mais casas de banho para mulheres e maior vigilância das mesmas, uma medida simples, impediria um grande número de abusos -, formação e sensibilização de todos os atores – polícias, trabalhadores humanitários, voluntários -, perceber que as mulheres e as crianças traumatizadas falam com muita relutância do que sofreram. No fundo, em vez de política e de resoluções bem intencionadas, a aplicação dos planos de ação – como a estratégia do ACNUR contra a SGBV – que já existem.
Esta história, estas histórias são no presente do indicativo, e o inferno, por vezes, não são os outros. Somos nós e a inação.
Escreve à segunda-feira