Sempre adorei homenagens. Talvez fosse mais adepta daquelas que se fazem em vida porque sempre ouvi dizer que essas é que contam. Mas agora, não. Agora sinto que todas as homenagens, todas as memórias que se criam após a morte de quem amamos são tão importantes como as outras. Sobretudo para quem cá fica – as homenagens são mais “para nós” do que “para eles”, porque os que ficam precisam mais. Porque os que ficam precisam de aprender a viver aqui, depois deles. As homenagens são mais para nós.
Homenagear com entrega, com alegria, com esmero quem já cá não está é a oportunidade perfeita para transformar a nossa dor noutra coisa, mas não é isso que fazemos. Esta sociedade que conhecemos alimenta uma forma tão negra de ver a morte – ainda a evocamos como uma terrível catástrofe que nunca deveria acontecer por ser tão injusta – que só sabemos sentir a morte como uma afronta, e a separação como um castigo.
A dor pode ser outra coisa. Tudo pode ser sempre outra coisa. A dor não tem de esmagar, corroer, ofender para sempre, e homenagear, relembrar, tornar única a vida de quem por cá passou transforma a dor em amor e torna mais fácil a despedida. Simplifica o luto porque o coração fica mais cheio. Aceitar o “até já” com uma genuína felicidade pelo tempo que trocámos com quem amamos, com uma verdadeira gratidão por nos sabermos melhores pessoas agora, porque fomos a pessoa da nossa pessoa, simplifica a despedida. A perda não custa menos, as saudades não são mais pequenas, mas o coração fica mais quente. E nós, obrigatoriamente, tornamo-nos melhores.
Até que, há um mês, quando soube que o Jorge (o Jorge era um admirador do Cancro com Humor e eu sou uma eterna admiradora dele) já cá não morava, a dor veio em bruto. Doeu-me como se “tivesse andado para trás”, como se nunca tivesse morrido alguém que eu admirasse. Fiquei tão triste comigo. Pensei que tinha perdido tudo o que aprendi. Julguei que já sabia o suficiente e que nunca poderia doer tanto outra vez, mas depois percebi que estava completamente enganada.
A dor nunca é mais pequena e, depois de algumas perdas, cada partida nova relembra as outras que já vivi. Mas não faz mal. Não quero esconder a dor. Quero transformá-la na verdade, com verdade, por isso, o primeiro encontro com o sofrimento é sempre violento – é sempre cheio, cru, real, doloroso. Mas só depois desse horroroso primeiro encontro é que é possível a transformação. Nunca antes.
Doeu tudo outra vez porque o primeiro encontro com a dor é sempre avassalador.
Umas semanas depois desse impacto, o telefone tocou. Era o Marco a convidar-me para apresentar a palestra Cancro com Humor num dia único: o dia em que nos juntaríamos para homenagear o homem incrível que o Jorge foi. Que o Jorge é. Senti, automaticamente, duas coisas: uma emoção enorme pela honra de estar presente neste dia e, claro, medo. Muito medo. Nunca tinha feito isto de forma tão exposta. Fazia-o para mim e por mim, mas nunca me tinha sido pedido que o fizesse para os outros. Teria de impulsionar a alegria na esposa, nas filhas, nos amigos do Jorge. Teria de falar de morte de outra forma, numa cultura em que isso tão raramente se faz, contrariando a nossa forma comum de lidar com ela.
Imaginam a tamanha responsabilidade? Imaginam a coragem desta família de lembrar o Jorge exatamente como ele gostaria de ser lembrado?
Avisei o Marco que não lhe poderia garantir que essa exposição corresse bem. Não poderia adivinhar como me comportaria perante tantas emoções mas, apesar do pânico, disse que sim. O Jorge adorava o Cancro com Humor. Sempre que podia estava presente nas minhas palestras, com o livro “Cancro com Humor” na mão, e eu nunca negaria estar presente no dia escolhido para o homenagear. Esta era a prova derradeira porque, afinal de contas, o Cancro com Humor é isto: na chegada e na partida, não podem faltar sorrisos.
O dia chegou. O salão estava completamente cheio. Sentei-me junto da esposa do Jorge – que ele tanto amava – e claro que lhe gabei a coragem. É preciso ter coragem para amar mais alto. As filhas, gratas pelo pai que tiveram e sempre terão, os amigos, tantos, todos ali. Todos eram um coração ansioso por enobrecer – e isso é amor.
Depois das músicas, das surpresas e de um dia inteiro dedicado ao Jorge, fui convidada pelo Marco a subir ao palco. Nunca me senti tão bem lá. A energia era una, forte, consistente. Todos os que ali estavam ali queriam estar. O sentimento era uníssono. O amor era completo. Dirigi-me àquela plateia e olhei várias vezes, e propositadamente, para a esposa do Jorge. Queria falar-lhe ao coração. Partilhei com todas aquelas pessoas a minha experiência pessoal. Contei-lhes o que ainda não tinha contado. Falei-lhes do Pedro, da Mafalda, de tudo o que aprendemos com o Jorge, e o humor saiu tão naturalmente como o amor. As palavras não me assustaram, o nervosismo não existiu, as lágrimas também quiseram sair, claro, mas durante todo aquele tempo falámos de amor e de morte com um sorriso no rosto – e absolutamente orgulhosos do nosso amigo por nos inspirar a fazer tudo aquilo.
Garantidamente, fui privilegiada. Tive a oportunidade de viver outra coisa. Tive a oportunidade de experienciar aquilo em que sempre acreditei e defendi, mas que é tão difícil fazer na nossa cultura: a celebração da vida quando a morte aparece. Estive na homenagem mais bonita, mais divertida, mais intensa, mais pessoal, mais leal da minha vida. O Cancro com Humor foi outra coisa. Foi melhor.
“Disseste aquilo que eu queria dizer mas não consegui”, disse-me a mulher que o Jorge tanto amou. E estas palavras confirmaram a minha certeza de que tem de haver uma forma mais bonita, mais plena, mais profunda de lidarmos com a morte. A perda não custa menos, as saudades não são mais pequenas, mas o coração fica mais quente. E nós, obrigatoriamente, tornamo–nos melhores.
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