Quando no ano passado, Kendrick Lamar esgotou o MEO Arena no Super Bock Super Rock, gerou-se um misto de reconhecimento e de espanto. Nos últimos anos, o rapper é uma das vozes mais ouvidas. Os versos são como ditados para as novas gerações. E as canções são consumidas nos dispositivos digitais. Mas durante anos, este mundo não foi levado a sério. Não passou para rádios, o «pensamento inteligente» subestimou-o e os festivais europeus – uma das principais montras do planeta musical e um filtro para aferir se o que se passa na internet, fica na internet ou se é real e tem expressão palatável – demoraram a reagir.
A questão não pode ser reduzida a números de bilheteira. Lotar um pavilhão está longe de ser um facto inédito. A maior surpresa não esteve no quê mas no como. Perto de vinte mil pessoas cantaram de uma ponta à outra os versículos urbanos de Kendrick Lamar. Repare-se: não são refrões veraneantes, nem melodias memorizáveis em nanossegundos.
A obra curta mas impactante de Kendrick Lamar é a fotografia sem filtros de uma existência que a 17 de junho completará 30 anos. Cinco deles de relação intensa a um ritmo próprio. Com ambições de deixar uma marca, mas sem desejos de imitar os demais. Consciente da responsabilidade mas sem desmesura no ego. Ruidoso na amplificação mediática dos álbuns, dos singles e dos vídeos mas quase silencioso nas redes sociais – o veículo mais eficaz de comunicação entre artista e público. E se há alguém que o sabe é ele. As entrevistas são raras. As publicações quase inexistentes.
A promoção no sentido tradicional do termo ficou para trás. E também já quase foi excluída dos manuais de comunicação. Mas enquanto a maioria procura o Instagram e o Twitter para projetar uma imagem de opulência e riqueza, com Lamar é a voz que fala mais alto. Se a cantiga ainda é uma arma, a palavra pode ser o gatilho da consciência. «O meu processo de criação parte sempre de pensamentos premeditados. Sou eu a pensar em ideias daquilo que quero dizer a seguir e, quando entro em estúdio, tenho de encontrar aquele som exato que vai espoletar essas emoções», explicava ao produtor Rick Rubin numa conversa filmada pela GQ americana nos jardins do estúdio deste último.
Na época dos teasers, do efémero e instantâneo, Lamar sabe por onde vai, e não é por aí. Se fosse atleta, era corredor de fundo. Damn é precedido por Good Kid, M.A.A.D. City, reconhecido clássico e álbum do ano para diversas publicações de 2012, e To Pimp a Butterfly, uma aventura com o jazz patrocinada por músicos como Kamasi Washington, Thundercat e Terrace Martin – um primeiro corte com a matriz do hip hop.
Lamar conhece a história do rap como a palma da mão e não esconde a admiração por lendas vivas como Eminem, Dr. Dre ou Jay Z mas em vez de os imitar sabe que só se pode ser uma referência quando a arte é uma imitação da vida e a criação vem de dentro.
Damn, o quarto álbum, saiu na sexta-feira santa e deu que fazer no feriado. Houve quem não dormisse à espera que o álbum chegasse às plataformas de streaming, os novos postos de escuta na era da desmaterialização. Num dia sem notícias, Lamar foi o acontecimento nas redes sociais. Desmultiplicaram-se as partilhas, os comentários, as várias interpretações sobre as diferentes camadas de um álbum onde, para se ter ideia da importância adquirida, a participação de Bono é uma nota de rodapé.
Não é necessário recuar muitos anos no tempo para reencontrar um mundo onde os U2, Coldplay, Madonna, os Red Hot Chili Peppers, os Pearl Jam ou os Oasis faziam despertar este tipo de curiosidade e apetite popular.
Tal como Kanye West, Drake, Beyoncé ou Bruno Mars, Kendrick Lamar é um dos rostos da mudança. E apesar de ser um cabeça de cartaz incontestável, reforçado ainda este fim de semana pela presença em Coachella, um campeão de vendas e de escutas em streaming, continua a parecer uma pessoa normal de 1,65. Magro, casado e com o aspeto de quem podia ser confidente e amigo sempre à mão.
Natural de uma cidades mais perigosas do mundo, Compton, na Califórnia, é a voz de um povo descontente e receoso da América de Trump mas fá-lo sem gestos panfletários ou posicionamentos políticos. Lamar fala do mundo a partir do seu mundo e conta histórias da rua e dos pares, dessacralizando a ideia do rapper inatingível e maior que a vida.
Para as gerações «maduras», Bob Dylan e Bruce Springsteen são símbolos do sonho americano. De um país livre, aberto, educado e até literato. Lamar arrisca-se a ser o senhor que se segue neste fio condutor histórico, beneficiando de um contexto favorável a que o hip hop seja a música mais ouvida no presente, mas também contribuindo para adicionar novas camadas de pensamento e ação.
Kendrick Lamar pode fugir mas não se esconde da autoridade adquirida. Para aqueles que chegam de novo, sobretudo, mas também eles um dia hão-de ser adultos. E arriscam-se a ser bem educados.