Tens cancro? Deixa-me dizer-te o que vai acontecer


Pronto, respira. Sim, tudo isto está a acontecer. Não o vamos negar nem disfarçar o cenário. Chora, diz asneiras, grita! Deita todo esse medo cá para fora. Fá-lo enquanto estás parado no trânsito, a caminho de casa


Tens cancro. O mundo que conhecias transformou-se noutra coisa que ainda não sabes bem o que é, mas que te parece tudo menos bonito. Os planos que tinhas para o verão deixaram de fazer sentido e o corpo está todo dorido porque, quando estás tenso, doem-te as costas. Ainda não sabes como contar à família. Adias a volta para casa, vais até pelo caminho mais longo, porque sabes que a tua notícia irá destruir-lhes os dias. Estás, na verdade, mais preocupado com eles do que contigo. Repetes, vezes sem conta, o diagnóstico que acabaste de ouvir. Queres convencer-te de que não estás a sonhar. Parece que te enfiaram num filme que não é o teu. Aquelas dores que sentias e que desvalorizavas têm agora um nome. O médico mostrou-te os exames, falou-te nos tratamentos e explicou–te qual a próxima fase, mas não tens a certeza de ter percebido tudo. Bloqueaste durante uma parte da consulta.

Pronto, respira. Sim, tudo isto está a acontecer. Não o vamos negar nem disfarçar o cenário. Chora, diz asneiras, grita! Deita todo esse medo cá para fora. Fá-lo enquanto estás parado no trânsito, a caminho de casa – ninguém irá desconfiar de nada. As pessoas estão habitadas a ver malucos na estrada. És só mais um gajo a passar-se. De repente, milhares de pensamentos invadem-te, atropelando-se uns aos outros. Estás sobretudo apavorado. É impossível não pensares na morte. Por mais positivo que sejas, por mais casos de sucesso que conheças, a morte é uma realidade que se apresenta. Choras enquanto pensas nos teus pais. A tua mãe vai ter um ataque cardíaco, tens a certeza. A tua linda mulher vai abraçar-te até te partir, pelo menos, três costelas. Lembras-te de todas as pessoas que amas. Lamentas não teres ido visitar a tua avó no fim de semana passado. Deverias ter aproveitado melhor o tempo. Agora tens noção disso. A cabeça está a mil. Continuas parado no trânsito. Finalmente, a respiração está mais calma. Já não choravas assim desde o 9.o ano – quando viste a tua primeira namorada, por quem estavas perdidamente apaixonado, a dar a mão ao mister da escola.

Até que começas a questionar-te. Sempre foste uma pessoa divertida, apaixonada pela vida. Adoras desporto, adoras os teus amigos, nunca foste outra coisa senão feliz. Preocupas-te se te irás perder no caminho. Calma, já falamos sobre isso. O humor irá surgir, garanto-te. Aconselho-te a que o recebas como fazes com o teu melhor amigo – com um abraço gigante, feliz por ele ter aparecido na tua maior hora de aflição.

Chegas a casa. Encaras a tua família, a tua mulher, os teus pais (e, a sério, tem um copo de água com açúcar na mão para dares à tua mãe). Estes dias tornam-se intensos, violentos, esgotantes, e os amigos telefonam-te insanamente a perguntar: “É mesmo verdade?” Estás exausto. Acho melhor esvaziares essa cabeça. Irás precisar de todo o espaço livre possível. Apaga as coisas que tens a mais (como os números de telefone decorados de gente com quem já nem te dás) porque o médico, a internet e a sociedade em geral irão encher essa mente de informação. Terás de aprender a filtrar apenas o que te interessa e faz bem, e a ignorar o que não te acrescenta nada.

Enquanto tudo isto se desenrola, num dia qualquer, algo estranho acontece…

O caminho para o hospital, depois de o fazeres algumas vezes, começa a parecer–te familiar. Vês a nova rotina a introduzir-se na tua vida e percebes que a tua capacidade de adaptação é maior do que pensas. Estás no carro. Dás por ti a aumentar o volume do rádio – um gesto mecânico que sempre fizeste – para ouvires a próxima música: “Doctor, doctor, give me the news…”, cantam do outro lado. Não tens como controlar – o riso aparece. Que timing e verso perfeito!

O sinal de alerta dispara. Primeiro momento de humor a acontecer no meio desta porcaria toda! Estás a ter um ataque de riso, não o contenhas! Recordas o choro compulsivo no trânsito há uns dias? Podes rir também com a mesma intensidade! Irás sentir-te mais aliviado, menos tenso, mais calmo! Vais entrar naquele consultório com uma pujança diferente e essa calma súbita, que até estranhas. É a alma a respirar outra vez!

Agora que experimentaste esse bombom, as respostas às tuas dúvidas surgem. Não, não vais perder a tua alegria. Precisas dela mais do que nunca. Um sorriso teu e os teus amores crescem dez metros. Começas a sentir o efeito do humor em ti. Chamam por ti no consultório. Decides mostrar ao teu médico que, afinal, tens dentes – ele ainda não os viu – e ofereces–lhe um generoso sorriso. Sentes-te pronto para começar este novo caminho. Entras de mão dada com a tua mulher. Sussurras-lhe ao ouvido:

“Vamos ficar bem. Não te vou deixar enviuvar só mesmo para enervar os parvalhões dos meus amigos que fariam fila para casar contigo.” Ouves a gargalhada da tua mulher. Percebes que tinhas tantas saudades de a fazer rir. Ela aperta-te a mão com força. Não imagina o mundo sem ti e não pretende abandonar-te nem por um segundo.

Tens cancro. O mundo que conhecias transformou-se noutra coisa que ainda não sabes bem o que é, mas agora já sabes que a vida não tem de ser aterradora. O humor reapareceu aos poucos, o amor reinventou-se. Voltas para casa. No teu carro, agora cabe o silêncio. A mão dela toca na tua. Sem te aperceberes, interrompes o silêncio. Cantas baixinho aquela música que não te sai da cabeça:

“Doctor, doctor, give me the news…”

É então que te apercebes de uma coisa fantástica: estás vivo.

 

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