Normalidades


Podemos perguntar-nos porque é que toda a gente noticia o muro de Trump, mas ninguém refere que Obama foi o presidente americano que mais estrangeiros deportou em toda a História


O maniqueísmo ideológico que se vem criando – com grande repercussão – à volta da leitura quase uníssona que os media emprestam a cada acto do presidente dos Estados Unidos da América convida a uma primeira reflexão sobre a essência da opinião e o papel dos jornais nas opiniões livres e múltiplas como construção da liberdade de expressão em várias vertentes além da política.

Interessa pouco ir analisar caso a caso a bondade das soluções defendidas pelo mesmo, ou a bondade da actuação do quarto poder, na ressaca da não verificação dos proféticos vaticínios da logo anunciada derrota do candidato republicano.

Mas podemos certamente perguntar-nos se, sem coberto de um estatuto editorial claro ou mesmo sem ele, será legítima a deriva normalizante da opinião pública que os jornais (e não só) vêm promovendo nas colunas de opinião, artigos, notícias e reportagens e, de uma forma geral, no tratamento que fazem deste e outros temas para a sociedade em geral, nomeadamente quando não quadram com a “moral vigente”.

Deixando o além-oceano e, por agora, o famoso muro, vem-me entre tantos outros à memória um bem apanhado e já antigo artigo do Alexandre Homem Cristo no jornal “Observador” (“Deixem o Capitão Haddock beber”), onde este – muito antes do ora apregoado dilúvio pós-Trump – discorreu sobre a necessidade de deixar o Capitão Haddock beber, metáfora que vale para muitos campos do direito ao livre-arbítrio por oposição ao mainstream ou à normalização.

Numa análise mordaz sobre os riscos do politicamente correcto, o cronista constata que hoje, no longínquo e selvagem Oeste, os cowboys não usam armas uns contra os outros e, no reino da fantasia, os estrunfes agora denominados smurfs, quando maus, passaram de pretos para roxos … e até o Lucky Luke, entretanto, já não fuma!

A demanda pela purga ideológica levada a cabo pelos relevant few relativamente aos impávidos many tornou-se uma obstinação ou, se é permitido dizê-lo, uma nova cruzada em versão leiga.

Aliás, nesta, como em tantas outras situações de conformação dogmática com o ascético pensamento dominante, estará por demonstrar se, efectivamente, será mensurável um efeito benéfico relacionável entre a ruminação imposta e a diminuição do número de fumadores no universo dos leitores do Lucky Luke.

Tal demonstração, como tantas outras, está por fazer! Por exemplo, note-se que neste mundo normalizado já não se atira “o pau ao gato” e o “Sebastião dá beijinhos (em vez de pancada) na mulher”. Ora, a mim, que não gosto particularmente de gatos, mas que também nunca fui compelido a molestá-los à paulada por causa da música, parece-me (de uma perspectiva mais liberal) que deve haver liberdade para se dizer que se atira paus (já não para atirá-los, o que, como se sabe, é hoje em dia crime) e que haja um regulador que, quando necessário, aplique remédios (ou gelo) no gato.

Sobre a pancada na mulher, sou, por princípio, contra a violência, e dando de barato que “entre marido e mulher não se mete a colher” se esse tema não for a materialização da lasciva galopante do casal na sua intimidade! Diria que por elementar prudência seria de abraçar a mudança da letra da música, não vá tornar-se uma coreografia de Verão.

Sem embargo, quer-me parecer que não será, também aqui, mensurável em que medida a alteração da letra da música se reflecte na inversão do fenómeno da violência conjugal. Ou o facto de o cowboy agora ruminar ter sido eficaz no combate ao tabagismo juvenil ou outro.

Ou, voltando ao princípio, podemos perguntar-nos porque é que toda a gente noticia o muro de Trump, mas ninguém refere que Obama foi o presidente americano que mais estrangeiros deportou em toda a história.

A norma parece pretender ser que, se escondermos das pessoas a violência, a sexualidade, os vícios, o racismo, o feminismo e demais temas controversos… e pusermos as mãos à frente dos olhos para não conhecermos tais temas nem os confrontarmos, ou se os escondermos ou promovermos fenómenos de pós-verdade, certamente que será como se eles não existissem no mundo.

Ora, a liberdade de expressão, valor supremo da humanidade e da democracia, não pode ser isto. A pluralidade de opiniões, ângulos e informação deve ser um valor civilizacional que os jornais (e não só) devem abraçar, em vez de adoptarem um discurso normalizado, uníssono e mistificador.

É que não devemos esquecer que, em muitas casas, o Sebastião, porque estava bêbado, bateu na mulher e no gato quando acabaram os cigarros, e uns fingem que isso não acontece e depois reclamam, mas outros educam para que não aconteça e isso implica que se vá além da normalização das massas, se abram horizontes e se discutam os muros.

 

Advogado na norma8advogados

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