Eis que surge o dia em que acordamos sem a nossa pessoa. Esfregamos os olhos, enrugamos a testa e tentamos que a vista se habitue à nova luz solar. Dói olhar para um mundo que já não tenha o melhor com ele. Percebemos imediatamente uma coisa: temos de voltar a aprender a ver porque todas as pessoas, todos os lugares estão desfocados. As coisas ganharam formas estranhas: esticaram e encolheram, ficaram bêbedas, ficaram turvas. As coisas passaram a ser outras coisas.
No início precisamos de usar óculos escuros para não cegarmos com as novas luzes. Custa tanto que até preferimos ter cegado logo, só para não sermos obrigados a esforçar os olhos a tanto. Parece- -nos impossível o exercício. Sentimos que voltámos ao nosso princípio, ao começo, porque não é só preciso aprender a ver de novo. A nossa existência é uma estreia completa. Comer, andar, respirar – tudo tem de ser feito outra vez.
Eis que surge o dia em que acordamos sem a nossa pessoa. A mente, a alma estão desfragmentadas e vão-se espalhando pelas ruas abaixo em cheiros, histórias, memórias que acordam a cada instante. O nosso corpo está também partido, descolado. Mesmo que não tenhamos partido nada efetivamente, mesmo que o médico nos olhe e nos diga que estamos bem, os braços, as pernas, a cabeça e todas as partes do nosso corpo parece que já não ligam. Estamos magoados e dói em todo o lado.
Eis que surge o dia em que acordamos sem a nossa pessoa. Vamos ouvindo os outros, mas ainda não os percebemos. Até o som sai distorcido. As palavras saem da boca deles e eles dizem coisas simpáticas porque nos querem bem, mas não os entendemos. Ainda estamos a tentar compreender a nova realidade, que parece tão irrealista. Parece que estamos a interpretar uma peça de teatro porque tudo sabe a falso, a montado, a impossível. Demoramos a aceitar que a nossa pessoa já não esteja sentada no sofá. O sofá ainda exibe a forma do corpo de quem já não está. O assento ainda está quente.
Eis que surge o dia em que acordamos sem a nossa pessoa. Ainda dói olhar, sobretudo de manhã. É de manhã que tudo é mais bonito e redescobrir a beleza pode ser doloroso. Parece-nos hipócrita fazê- -lo. Mas acabamos por ceder porque ver bonito é um vício. Porque, afinal, o tempo não parou. Os nossos olhos ainda abrem, ainda mexem, ainda brilham, porque ainda cá estamos. Afinal, o tempo não parou e trouxe com ele tanta coisa – acalmia, desassossego, nostalgia e aceitação. Ainda bate, o nosso coração ainda bate.
Eis que surge o dia em que acordamos sem a nossa pessoa. Abrimos e fechamos as mãos, devagarinho, repetindo movimentos, mexemos o corpo, rodamos a anca, a cabeça e olhamo-nos de baixo para cima. Quem sou agora? Perguntamos alto ao eco, para ver se ele nos devolve uma resposta. Mas isso não acontece. Somos nós que temos de a encontrar.
– Quem sou agora?
O tempo cose-nos. O tempo junta as nossas peças e encaixa outras. Entendemos que somos o nosso passado, o mal resolvido e o bem tratado; somos as memórias e as novas histórias; somos as dores e as gargalhadas; somos o mesmo corpo – mas agora reconstruído. Somos as cicatrizes; somos a velha pele; somos o olhar antigo.
– Quem sou agora?
E algures em ti, respondes-te:
– Sou o que via sozinho e o que via contigo – sou o que vê o novo. Sou para sempre um corpo cosido. Sou feito do passado e do presente que ainda existe. Sou um tempo articulado – sou o novo e o antigo. Sou o que sou agora e sou o que fui contigo.
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Escreve à quinta-feira