Filhos do Vento. A adoração de Rabo de Peixe

Filhos do Vento. A adoração de Rabo de Peixe


“AZ-RAP: Filhos do Vento”, documentário produzido pela Red Bull sobre a cena do hip hop açoriano, tem estreia mundial digital na segunda-feira, mas antes disso foi exibido em Rabo de Peixe, o lugar onde nasceu, pela voz de Sandro G.


A entrada em Rabo de Peixe faz-se pela parte rica, lugar onde moram os senhores que aqui não são de terras, são de barcos, os que levam para o mar a gente que mora lá em baixo que é a que vive da pesca. E Rabo de Peixe é gente, gente do mar e gente da terra e crianças que continuam da rua como em mais lugar nenhum. Hermano conduz-nos por esta descida à vila escolhida pelo Tremor para a abertura da edição deste ano, descida até ao estaleiro desta vila onde cresceu, onde no tempo dos avós a gente de cima, da terra, não se misturava com a gente de baixo, a do mar. Preconceito que já quase não existe, como já quase não existem as famílias de 20 filhos que Rodrigo Reis veio encontrar quando na viragem do milénio chegou de Trás-os-Montes para aqui dar aulas de música e nunca mais voltar.

Era a altura em que Rabo de Peixe se fazia assunto no Continente pela boca de quem nunca a tinha visto mas repetia essa ideia que ficou até hoje de que era este o lugar mais pobre da União Europeia. E foi, durante anos, os mesmos em que Sandro G conseguiu dar-lhe uma voz, nenhum medo ou pudor em fazer hip hop em rabopeixense, de escrever para dizer o que era a vida aqui. “Rabo de Peixe…/ Eu sou de Rabo de Peixe, mas não tenhas medo/ O garrafão dá-me sede, eu sou um grande bêbado/ Olha para a pistola, eu nunca fui para a escola/ Passeando lá na rua, vendendo a coca-cola”, princípio para o refrão que minutos depois da conversa com Hermano começa a ouvir-se sair do estaleiro, do meio dos barcos, pela voz das crianças da EsMusica.RP, a escola de música de Rabo de Peixe.

E vieram as mães e as avós ver as filhas e as netas, vieram as crianças da rua, vieram todos os daqui e os de fora, os de São Miguel e os do Continente ver estas crianças cantar Sandro G em “eu não vou chorar/ esta vida não era para mim”. E isto é um concerto mas é só o princípio do que há de ser este fim de tarde voltado para o mar em Rabo de Peixe, onde se montou uma tela para a estreia mundial de “AZ-RAP: Filhos do Vento”, documentário produzido pela Red Bull sobre o hip hop açoriano que se faz sobretudo entre São Miguel e a Terceira e que o festival Tremor levou na edição do ano passado do YouTube e do Facebook para um palco que devolveu às redes sociais o movimento com o nome #hiphopaçoriano.

“Quer as pessoas queiram quer não o sítio de onde somos tem sempre influência no que fazemos”, diz Rushrap, autor de um blogue sobre hip hop da Terceira, a outra ilha onde em janeiro Diogo Lima andou a filmar o documentário que pode ser visto no site da Red Bull a partir de segunda-feira. E explica Rushrap que daí virão “uma certa melancolia e frustração” comuns a todos os sítios pequenos. “A única diferença é que este é um sítio pequeno de onde não há escapatória. É tudo água.”

Mas será também isso parte do que marca a diferença do hip hop feito nos Açores, tornado fenómeno por Sandro G. “Na própria música popular urbana dos Açores há indicadores que são muito próprios”, diz o radialista António Sousa, da Antena 1 Açores, para acrescentar que “Sandro G foi de facto um fenómeno” ao fazer-se maior que os Açores inteiros. “A gente sente quando o Sandro está na ilha. ‘O Sandro G está cá…’ Ele tem uma presença enorme.” E este fim de tarde foi pretexto para Sandro G voltar, numa videochamada naquela tela enquadrada pelo mar, a explicar que não há nada de teatro nem de atores no hip hop que se faz aqui. “É tudo a realidade.” Mais dura do que devia ser, como muitas das histórias que vão dar cada uma das rimas desabafadas por estes “filhos do vento”.

“Estamos entre continentes, somos portugueses e somos porosos e somos por isso mesmo filhos do vento”, diz António Pedro Lopes, coorganizador do  Tremor, que decorre até sábado em São Miguel. “Somos filhos da América, somos filhos da Europa, somos filhos das descobertas, somos filhos do trabalho, somos filhos do mar e isso tem muita força.” E o mesmo diz Swift Triigga, rapper de São Miguel que ouvimos no documentário e havemos de ver atuar de novo nesta quarta edição do festival. Do outro lado do oceano veio o hip hop que fala em blocos e fala em ghettos. “A gente sabe que aquele é o estilo de vida deles. Nós somos uma terra de vaquinhas felizes, de queijo, de leite, etc. Mas não é só turismo aqui, há outras coisas, há arte.”

As jornalistas viajaram para os Açores a convite do Festival Tremor com apoio da Sata