A justiça sentada no mocho


Diz-se amiúde que, neste ou naquele processo, a justiça será julgada, que também ela se sentará no mocho (para usar a expressão popular que se refere ao banco do réu). 


Ultimamente tem-se ouvido ou lido isso mais do que é costume, a propósito de um processo que leva o nome de uma rotunda em Lisboa – e no qual intervenho como advogado (fica a “declaração de interesses”, aliás óbvia, mas é avisado não fazer de conta, como fazem alguns que opinam, que nada temos que ver com os assuntos, por laços profissionais, familiares ou outros, que o mundo está cheio de laços). Ora, essa afirmação tem alguma verdade, mas é ao mesmo tempo pateta ou mal-intencionada, e em qualquer caso é perigosa. Explico. 

Tem alguma verdade porque neste caso, como em todos, a justiça está sob escrutínio (aliás, é administrada em nome do povo) e o que faz ou não faz e como faz é objeto de avaliação e de julgamento, quer dos que estão envolvidos, quer da população em geral. Mas se isto é assim, não é exatamente isso que se quer dizer com aquela afirmação sobre a justiça estar sob julgamento, porque poucos estão interessados em analisar a sua atuação com olhos de ver, em avaliar o que faz e não faz e como faz, e porquê. O que interessa à maioria é uma análise superficial – própria de uma civilização do espetáculo, que nivela por baixo e privilegia o entretenimento (é Vargas Llosa quem o escreve, e eu subscrevo) – que verifique se, no final do julgamento, tendo havido acusação, houve absolvição ou condenação. Se houve condenação, então está tudo bem; se não houve, então, a justiça falhou. 

Ora, isto é pateta ou é mal-intencionado, porque haver acusação e absolvição quer dizer tanto sobre a Justiça ter sido boa ou má quanto ter havido acusação e condenação, ou quanto ter havido arquivamento, ou condenação e recurso com sucesso, e por aí adiante. O que interessa é saber em cada momento e em cada fase porque é que houve isto ou aquilo, e só essa análise – que dá trabalho e leva tempo, logo está arredada da espuma dos dias e das novelas sobre homens que mordem cães – é que permite dizer se a justiça esteve bem ou mal.

Ela pode estar bem, ou mal, tendo havido acusação e depois absolvição. Isso não significa necessariamente patologia, tal como haver acusação e condenação não significa forçosamente perfeição. Depende. E é por isso que a afirmação referida no início do texto é perigosa, porque ela causa sobre o sistema de justiça pressão para que o resultado final seja só um e bata certo – na “lógica” ligeira com que as coisas são vistas –, ou seja, para que a uma acusação se suceda uma condenação e a esta um recurso improcedente.

Pois só assim a justiça parece funcionar, segundo a vox populi, só assim se levantará do mocho, absolvida. E é por isso que a afirmação é pateta ou mal-intencionada. Eu gostaria de acreditar que ela é apenas pateta em todas as bocas, e que não há má intenção. Tanto quanto gostaria de acreditar num velhote de barbas e trajo vermelho que voa pelos céus no Natal.
 

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