Sei que ouves clichés todos os dias. Desde que adoeceste que as pessoas passaram a dizê-los diariamente. Muitas vezes, fazem-no porque te querem fazer sentir melhor mas também porque não sabem realmente o que dizer – e o cliché é aquela carta que toda a gente tem debaixo da manga. É o truque mais fácil. É o nível básico para qualquer um passar. É o engate que recorremos quando estamos deprimidos, carentes, bêbados e sozinhos na discoteca.
Bem sei que é cruel teres de fingir que a parte mais interessante do teu dia está a acontecer naquele momento em que estás a ouvir o óbvio, sobretudo se os clichés que escutas forem os mandões.
“Tens de ser forte”: este é talvez o cliché mais debitado no mundo do cancro. Esta expressão encaixa em qualquer hora do dia e serve para tudo e mais alguma coisa. Para o pequeno-almoço, para o almoço e para o jantar e, se tiveres azar, ainda a ouves na hora da ceia antes de te ires deitar. Para quem a diz, esta frase é uma das sete maravilhas do mundo, porque não é preciso ser muito inteligente para dizer esta bodega. O que é mesmo necessário é estar totalmente concentrado na expressão facial, que deve transmitir compaixão mas também assertividade – essa assertividade é sempre acompanhada por um agarrar de mãos, para dar mais emoção à ocasião (gente melodramática adora dizer isto).
“Tens de viver um dia de cada vez”. Esta é estúpida. Bem sei que tens vontade de lhes responder que, pelo menos quando estás a fazer quimioterapia, saltas uns quatro dias à frente para a coisa andar mais depressa. E para entrares logo de fininho no fim de semana. Claro que compreendes a intenção da frase – viver um dia de cada vez significa saber viver o presente, sem ansiedade pelo futuro. Até aí tudo bem. O que te chateia é que o digam porque sentem que têm de dizer alguma coisa. Não precisas que te animem sempre. Às vezes só queres que te convidem para jantar e que te façam rir com banalidades.
“Tens de pensar que há gente pior do que tu”. Esta é doentia. Já falámos muito sobre isto e continuo a não compreender esta fórmula de nos sentirmos bem, comparando-nos aos outros que, aparentemente, estão piores do que nós. Não gosto de me sentir feliz por ter o meu dedo partido, só porque o desgraçado do lado tem uma perna engessada. Não faz sentido. Esta não deveria ser a melhor forma de nos animarem. A gratidão é experienciada de forma individual e cada um de nós tem a capacidade de descobrir pelos seus próprios olhos, aquilo que o faz feliz. Sem comparações. Sem competições (a sério, manda exorcizar os que dizem esta afirmação).
“Tens de te arranjar mais”. Ui, ui. Esta até arrepia a espinha. Esta frase relembra-me os meus traumas de verão, quando a minha família me mandava beber água para disfarçar a celulite… Por amor dos santinhos, existem outras formas de aconselhar a nossa amiga a cuidar-se melhor. Por exemplo, se te oferecerem um dia no SPA para te mimares, não ficas chateada pois não? Eu não ficaria. Assim, ficam todos contentes: o que mandou a dica e a que recebeu o presente. Só assim é que vale. Se não têm nenhum presente para te oferecer, nem oiças até ao fim.
“Tens de recuperar a tua vida”. Hum… esta é violenta também. Com o cancro a estorvar, claro que os dias e os planos mudam radicalmente. Mas isso não significa que a tua vida tenha acabado e que tenhas de reunir um grupo de escuteiros para encontrarem a tua vida perdida. Vais perceber que há coisas que queres recuperar e outras que queres deixar lá atrás, porque não prestavam assim tanto. Vais construir novos sonhos, novos valores e amar novas pessoas. Também ganhas. Muito. Prometo que sim.
“Tens de conhecer pessoas que estão a viver o mesmo que tu”. Tradução: “fala com quem te compreenda porque eu já esgotei o meu cardápio de clichés”. Sim, a meu ver, é positivo conheceres pessoas que passaram ou estão a passar por algo com o qual te identificas mas essas coisas acontecem naturalmente. Podes conhecer alguém que, aparentemente, te compreendam mas, vê lá tu, pode não existir empatia. As melhores relações surgem na improbabilidade dos dias.
Os clichés existem. Eu uso-os também. Estão enraizados em nós e são tão atrativos como aqueles números para onde ligamos de vez em quando, porque nos pode calhar o carro. Às vezes, são mesmo irresistíveis. Mas como no uso do sal, é preciso bom senso. Moderação. Aliás, mais do que moderação, é só preciso pôr o coração a falar. Ele diz as melhores palavras. E às vezes, só diz silêncio.