Os tempos estão a mudar outra vez


Denunciar e combater os escândalos de nada servirá se não formos capazes de nos envolvermos emocionalmente na procura epopeica de uma sociedade em que tais fenómenos não façam parte do nosso quotidiano


“Os tempos estão, de novo, a tornar-se chatos.” Foi o que, para meu espanto, um amigo me confessou há dias.
Era, contudo, o mesmo que, tempos antes, parecia galvanizado com o rumo da nossa vida. 

Referia-se ele, melancólico, à sensaboria recorrente das denúncias dos escândalos, aos comentários mediáticos sobre as denúncias dos escândalos e aos discursos políticos feitos sobre os comentários das denúncias dos escândalos, que se repetem, histéricos, mas sempre monótonos e conformados, num círculo vicioso e sem fim.
Os tempos andam, de facto, chatos.

Os escândalos sucedem-se e nada nem ninguém parece ter o condão, não de calar as obrigatórias denúncias, mas de procurar alterar o que tem de ser alterado para que aqueles não se repitam.

Vi, recentemente, dois filmes de histórias de estrada.
Um, francês, chamava-se “Tour de France” e relatava a história de um velho trabalhador que, reformado, queria realizar o sonho de, à semelhança de Claude Vernet, pintar os principais portos do seu país.
Deveria ter feito esse passeio com o filho, mas este pediu a um jovem amigo de ascendência argelina que conduzisse o pai pela França.

A história do filme é a do inicial relacionamento difícil entre estas personagens devido aos preconceitos chauvinistas e racistas do velho. A relação só se altera quando, depois de muitos quilómetros, o jovem, já desesperado, lhe explica, exaltado, que o que ele parecia não gostar nos franceses de origem argelina era o facto de, como num espelho, eles lhe devolverem cruelmente a imagem das suas frustrações e dos seus fracassos.
O outro, americano, chama-se “American Honey” e conta os episódios de uma viagem sem fim de um grupo de jovens sem futuro pelas míticas estradas dos EUA.

Vivendo de expedientes, procuram fazer de cada dia uma festa alienante que nada mais pode celebrar, afinal, que a tristeza e o desespero provocados pela falta de um projeto de vida.
O filme transmite maravilhosamente essa angústia e alheamento: o vazio de quem não encontra futuro na nossa sociedade.

Os filmes, um sobre um velho, outro sobre jovens, revelam esse sentimento atual de impotência e desespero.
Há tempos li neste jornal uma estimulante entrevista de Nuno Ramos de Almeida a Michael Löwy.
Sugestionado, fui ler “Utopias”, o livro que agora Löwy editou entre nós.

Fala da importância de devolver “romantismo” à luta pelas ideias políticas generosas e humanistas, mesmo daquelas que procuram na religião um suplemento de esperança em que a política dos nossos dias é, em regra, omissa; fala do fascínio por um passado mítico e da vontade de futuro.
Fala, por isso, também do Papa Francisco.

Mas, no seguimento de Ernst Bloch, fala sobretudo da secura de muitos discursos políticos – dos discursos chatos – e da importância de projetar um porvir que não se queira parecer de alguma maneira com um presente omnipotente, mas cinzento e falho de projeto e de esperança.

O livro pode, aliás, ajudar a compreender alguns fenómenos políticos de sucesso dos nossos dias.
Denunciar e combater os casos de corrupção, os desmandos económicos e financeiros, a igualmente criminosa conivência com eles ou a pura ladroagem e desvergonha que nos conduziram à crise que ainda nos martiriza é fundamental.

Mas de nada servirá – ou apenas servirá para nos desmotivar ainda mais – se, concomitantemente, não formos capazes de nos envolvermos emocionalmente na procura epopeica de uma sociedade em que tais fenómenos não façam parte do nosso quotidiano.

Os tempos serão sempre chatos e sem esperança, sem um envolvimento e um discurso corajoso e motivador na procura de um futuro diferente, mais distendido e mais humano.

 

Os tempos estão a mudar outra vez


Denunciar e combater os escândalos de nada servirá se não formos capazes de nos envolvermos emocionalmente na procura epopeica de uma sociedade em que tais fenómenos não façam parte do nosso quotidiano


“Os tempos estão, de novo, a tornar-se chatos.” Foi o que, para meu espanto, um amigo me confessou há dias.
Era, contudo, o mesmo que, tempos antes, parecia galvanizado com o rumo da nossa vida. 

Referia-se ele, melancólico, à sensaboria recorrente das denúncias dos escândalos, aos comentários mediáticos sobre as denúncias dos escândalos e aos discursos políticos feitos sobre os comentários das denúncias dos escândalos, que se repetem, histéricos, mas sempre monótonos e conformados, num círculo vicioso e sem fim.
Os tempos andam, de facto, chatos.

Os escândalos sucedem-se e nada nem ninguém parece ter o condão, não de calar as obrigatórias denúncias, mas de procurar alterar o que tem de ser alterado para que aqueles não se repitam.

Vi, recentemente, dois filmes de histórias de estrada.
Um, francês, chamava-se “Tour de France” e relatava a história de um velho trabalhador que, reformado, queria realizar o sonho de, à semelhança de Claude Vernet, pintar os principais portos do seu país.
Deveria ter feito esse passeio com o filho, mas este pediu a um jovem amigo de ascendência argelina que conduzisse o pai pela França.

A história do filme é a do inicial relacionamento difícil entre estas personagens devido aos preconceitos chauvinistas e racistas do velho. A relação só se altera quando, depois de muitos quilómetros, o jovem, já desesperado, lhe explica, exaltado, que o que ele parecia não gostar nos franceses de origem argelina era o facto de, como num espelho, eles lhe devolverem cruelmente a imagem das suas frustrações e dos seus fracassos.
O outro, americano, chama-se “American Honey” e conta os episódios de uma viagem sem fim de um grupo de jovens sem futuro pelas míticas estradas dos EUA.

Vivendo de expedientes, procuram fazer de cada dia uma festa alienante que nada mais pode celebrar, afinal, que a tristeza e o desespero provocados pela falta de um projeto de vida.
O filme transmite maravilhosamente essa angústia e alheamento: o vazio de quem não encontra futuro na nossa sociedade.

Os filmes, um sobre um velho, outro sobre jovens, revelam esse sentimento atual de impotência e desespero.
Há tempos li neste jornal uma estimulante entrevista de Nuno Ramos de Almeida a Michael Löwy.
Sugestionado, fui ler “Utopias”, o livro que agora Löwy editou entre nós.

Fala da importância de devolver “romantismo” à luta pelas ideias políticas generosas e humanistas, mesmo daquelas que procuram na religião um suplemento de esperança em que a política dos nossos dias é, em regra, omissa; fala do fascínio por um passado mítico e da vontade de futuro.
Fala, por isso, também do Papa Francisco.

Mas, no seguimento de Ernst Bloch, fala sobretudo da secura de muitos discursos políticos – dos discursos chatos – e da importância de projetar um porvir que não se queira parecer de alguma maneira com um presente omnipotente, mas cinzento e falho de projeto e de esperança.

O livro pode, aliás, ajudar a compreender alguns fenómenos políticos de sucesso dos nossos dias.
Denunciar e combater os casos de corrupção, os desmandos económicos e financeiros, a igualmente criminosa conivência com eles ou a pura ladroagem e desvergonha que nos conduziram à crise que ainda nos martiriza é fundamental.

Mas de nada servirá – ou apenas servirá para nos desmotivar ainda mais – se, concomitantemente, não formos capazes de nos envolvermos emocionalmente na procura epopeica de uma sociedade em que tais fenómenos não façam parte do nosso quotidiano.

Os tempos serão sempre chatos e sem esperança, sem um envolvimento e um discurso corajoso e motivador na procura de um futuro diferente, mais distendido e mais humano.