Estou a escrever-vos do internamento, diretamente do Hospital de Santa Maria. Escrevo-vos também com o braço direito condicionado – tenho um cateter no braço e dói-me quando o dobro –, por isso perdoem-me alguma eventual gralha. Darei o meu melhor.
Escrevo condicionada – não só pelo braço, mas também porque me sinto aprisionada aqui – e acho que busco na escrita alguma espécie de libertação, como se pelo menos a escrever fosse mais livre.
Começo por pedir para não lamentarem por mim. Não mereço. Sou uma princesa mimada que está internada há apenas oito dias. Há quem esteja muito mais tempo e com um maior sofrimento. Não tenho moral para me queixar. E este texto não terá qualquer lamúria minha. Nem o meu internamento tem. Estou mesmo a tentar aprender alguma coisa aqui. Já é a terceira vez na minha vida que estou internada, mas há sempre tanto para compreender.
Quando estamos internados, estamos ansiosos para ir ver o mundo lá fora e esquecemo-nos de que o mundo está aqui. A vulnerabilidade habita neste lugar, daí sentir que o fundamental dorme em cada quarto deste piso. Aqui tudo é cru. Nu. Real. As coisas são como são e não deveria haver espaço para fingir. Fingir o quê, quando as roupas bonitas estão metidas num saco de plástico? Quando a saúde passa a ser o tesouro maior? Quando o desconforto, o medo, o susto estão sentados na nossa mesa-de-cabeceira? Fingir o quê?
Digo-vos, nessa verdade que para mim é obrigatória, que nunca senti tanta falta de afetos como agora. Tenho-os todos quando os que me amam estão comigo. E sinto tanto a falta dos afetos quando eles se vão embora. É como se os levassem. A solenidade e a simpatia não são afetos. Um sorriso é um afeto. Um sorriso verdadeiro, sem julgamento, é um afeto. A cerimónia que têm para comigo não é afeto. É educação, é profissionalismo, mas não é afeto. No hospital, a dor anda de mão dada com o amor, mas às vezes separam-se. Às vezes, a dor é só dor e o amor é só amor. E eu vivo ambos. Ambiciono escolher mais vezes o amor, mas a dor também faz parte. A dor traz lucidez. Mas é claro que é a dor que mais me tem custado experienciar. Tem-me doído visceralmente assistir à dor dos outros. Eram três da manhã e eu estava acordada. O senhor gemia e eu chorava com ele. Por ele. Chorei durante horas por aquele senhor de quem nem sei o nome. Adormeci embalada depois nesse choro.
E quando as condições não são adequadas? Quando o Hospital de Santa Maria (e tantos outros, mas é neste que estou) tem macas e macas que entram diariamente como se fossem carruagens que vão chegando e estacionando, permitindo que o choro seja tão audível ao ponto de o tocarmos nas extremidades? E quando os profissionais de saúde são obrigados a trabalhar em condições mais precárias? Como é que no caos entra a sensibilidade, a humanidade, o silêncio e as palavras certas? Entra mais. Tem de entrar mais.
Claro que a estrutura tem de mudar. Mas se as leis e as estruturas demoram a transformar-se, nós, que ainda cá estamos, temos de dar o nosso melhor. Porque talvez nós sejamos também a estrutura, o sistema e o início da transformação. Talvez sejamos as próprias pedras do hospital.
Claro que a estrutura tem de mudar. Não podemos admitir que os doentes se empilhem e se acumulem nos corredores dos hospitais. Isto tem de ser visto, relatado, falado. Porque não é justo que se dificulte o que já é tão difícil. Dormir numa maca que está num corredor, sem qualquer privacidade, à mercê dos barulhos, das luzes, dos cheiros, é desumano. Quem manda nisto tem de saber o que se passa aqui. E nem tentem dizer que é uma situação temporária e transitiva – palavras que os que se desculpam usam tanto – porque esta é a realidade de Portugal.
Mas nós continuamos aqui, e é aqui que também acontecem pequenos milagres. Se, por um lado, as dores no hospital são ampliadas – porque nunca é só a nossa dor, é a dor da cama ao lado que já adquirimos também –, as vitórias também têm uma dimensão maior. Por exemplo, fiz, pela primeira vez, xixi numa arrastadeira. Não é o máximo? Estou orgulhosa. Estou mesmo. No internamento deixamos cair a coroa e as poses. Eu fiz xixi num corredor, numa arrastadeira, e soube-me bem. Eu, a menina que desmaia se lhe entram pela casa de banho adentro, superou a sua própria mania. Além disso, tenho feito outra proeza. Uso, propositadamente, as toalhas de banho do hospital. Poderia perfeitamente ter a minha própria toalha, mas mandei a toalha ao chão – metaforicamente – e decidi utilizar o que há. Não me interessa estar à parte da minha própria realidade. É esta a verdade de agora (pelo menos desta semana) e pretendo vivê-la com autenticidade. E isso implica usar as mesmas toalhas que todos usam.
E por usar as mesmas toalhas que todos usam é que não posso ficar indiferente ao que vejo e ao que sinto. Porque não posso esquecer que os lençóis e o colchão em que me deito serão de outra pessoa amanhã. Mas sabem uma coisa? Por mais que discuta e peça o melhoramento das condições tão necessárias, sairei deste sítio com a certeza de que, para mim, os afetos são mais importantes que a higiene.