Manuel Alegre. “A minha segunda candidatura foi um erro”

Manuel Alegre. “A minha segunda candidatura foi um erro”


Fala da vida que viveu: “Tensa, intensa e densa!” E da dureza da guerra, da prisão e do exílio


O entrevistado tem muito para contar. Mais de 80 anos de uma vida digna de um personagem de Musset. Mistura de revolução e romantismo. Uma ideia de pátria, uma poesia interventiva, um gosto pela seiva. Uma entrevista de afetos. Afinal, entre quem fala e quem escreve, há lugares e pessoas que se repetem. E Águeda como uma mãe debruçada na janela da infância.

Falemos desse tempo, Manuel, que já morreu, em que era o avançado-centro que marcava mais golos no Largo do Botaréu.

Andava na escola primária, em Águeda, na Escola do Adro, com aqueles meus companheiros que vinham descalços ou de chancas, fato de cotim, e traziam um bocado de broa e uma sardinha para todo o dia. Eu era dos poucos que tinha sapatos. Era um dos meninos da terra. Os jogos do Botaréu eram o outro lado da escola: a rua. 

Fale do Botaréu. Nem toda a gente sabe, infelizmente, o que é o Botaréu.

Era um largo de terra batida que ficava no fundo da minha rua, perto de um jardim que já não há, e onde se jogava à bola. Uma praça que dava para o campo. Havia narcejas e sombrias. Uma baliza do lado do rio, outra num portão que ainda lá está. A Rua de Baixo defrontava Assequins, defrontava Paredes. Às vezes acabava tudo à bordoada. E o velho Francisco Balreira ficava a ver-nos.

“O Canto e as Armas” faz 50 anos. Tenho–o, velhinho, numa edição da Centelha, Coimbra.

“Chegam palavras com o Alípio e o Botaréu/ palavras de Águeda com sinos a dobrar”

Foi uma fase fundamental da vida…

Foi. Havia uma grande estratificação de classes. Os filhos dos operários e dos pobres não iam para o liceu. Foi um tempo de fraternidade, de amizade, da outra linguagem. Cada estação do ano tinha os seus jogos, o botão, a bilharda, o pião… E o futebol da bola de trapos do cu de galinha. Foi também o tempo de aprender a defender-me. Uma vez apareci em casa meio a choramingar e o meu pai disse-me: “O cavalheiro, para a próxima, leva e dá!”

Uma aprendizagem também em termos sociais.

Já contei esta história muitas vezes. Perguntava: “Porque é que uns usam sapatos e outros não?” E nunca me deram uma resposta clara. E também foi o tempo da descoberta do campo e do rio.

“Rio Águeda que vais/ Banhando a verde fragrância/ Das margens do Nunca Mais/ Onde fica a minha infância”

Havia, igualmente, a importância do rio.

Eram coisas quase iniciáticas. O Poço do Conde, que ficava numa curva do rio. Havia a lenda de uma noiva que aí se teria afogado e depois surgira a correr pelo campo, com as vestes brancas a adejar. As mães diziam: “Não vão para o Poço do Conde!” E nós íamos. Eu fui. Os meus filhos também. Toda a Águeda foi. Mas morreram lá alguns.

Foi aí que começou a sua carreira de nadador?

Foi.

Carreira, aliás, brilhante.

Eu não aprendi a nadar muito cedo. Fazíamos que nadávamos. Com o conselheiro Afonso de Melo, meu querido amigo. Quando aprendi, foi logo o crawl. Em breve estava a participar numa prova, em Coimbra.

Nadador do Recreio?

Isso. Representava o Recreio de Águeda. Depois fui para o Porto, nadei pelo Pejão. Ao 17 anos bati o máximo nacional dos 33 metros livres, na piscina da Granja. Fui campeão regional, livres e costas. Apanhei duas pleurisias – naquele tempo, uma coisa terrível. Fui tratado a estreptomicina, que deixa sempre marcas. Disseram-me que não iria poder voltar a nadar, mas voltei, na Académica, e fui campeão nacional e participei em provas internacionais.

Águeda teve alguns bons nadadores a nível nacional.

Sim. Eu treinei alguns deles. O Alípio Miranda, meu melhor amigo de infância, o Cura, que é hoje médico, o Bernardo Saraiva…

Da sapataria…

Curiosamente, quando fui campeão nacional na Praia das Maçãs, pela Académica, nos 200 metros livres, ele ficou em segundo, pelo Sport Algés e Águeda. E em terceiro ficou o Vicente de Moura, que pertenceu ao Comité Olímpico.

“Oitenta e nove mil quilómetros quadrados/ O céu e o mar. E todos os navios./ E todos os poemas”

Nasce numa família com gente republicana, gente monárquica… Uma família politizada.

Muitas vezes, quando se fala da minha família, fala-se mais do lado materno. O meu trisavô paterno participou da primeira revolta contra D. Miguel, em Aveiro. Ele e mais três foram parar à Cadeia da Relação do Porto, foram enforcados, cortaram-lhes as cabeças e espetaram-nas nuns paus, frente às casas das mães. O meu avô Francisco, mais tarde visconde do Barreiro, fugiu para o Brasil. Falamos, portanto, de monárquicos liberais, de uma certa fidalguia de província. O meu avô materno foi um dos chefes da Carbonária, amigo íntimo do Afonso Costa. Uma figura importante da República. Era uma daquelas figuras da velha Águeda. Eu era, como disse o Mário Soares na apresentação do “Alma”, uma espécie de designado. Mas uma das minhas referências é o meu pai. O João Sarabando, insuspeito, tinha um grande culto da família Duarte. O Mário Duarte, que era monárquico e amigo do rei, fez em Aveiro uma revolução social através do desporto. Pobres e ricos do mesmo lado. E esteve na génese do futebol em Portugal, juntamente com o seu amigo Pinto Basto. O primeiro jogo de futebol no Norte foi entre uma seleção de Aveiro e uma do Porto, ali ao Bessa. Chegou a haver um Clube Mário Duarte. Por isso, na nossa família, há uma grande tradição do desporto. Faz parte da formação de todos nós. 

Falemos agora da sua fase de Coimbra.

Primeiro estive no Liceu Passos Manuel, em Lisboa. Em seguida gramei três meses no Colégio Almeida Garrett, no Porto, que era uma prisão. Ainda andei no Liceu Castilho, em São João da Madeira, passei pelo Liceu de Aveiro e fui para o Alexandre Herculano, no Porto. Um edifício histórico, do tempo da República, e agora chove lá dentro. Não há nada que justifique isso!

Coimbra surge, então, como nova fase de crescimento.

Fui para Coimbra em 1954. O meu pai tinha jogado na Académica e eu levava na cabeça toda a mitologia coimbrã.  Lembro-me dos treinos e jogos da Académica. De ver o Bentes e o Azeredo. A boémia. E o teatro: fui fundador do CITAC (Círculo de Iniciação Teatral da Académica de Coimbra), representámos como estreia “A Nau Catrineta”, pelo Vasco de Lima Couto, e eu entrava a dizer: “Lá vem a Nau Catrineta…” O Assis Pacheco a fazer não sei que papel e as três meninas debaixo do laranjal, uma delas a Ivete Centeno. Depois passei para o TEUC (Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra). Tive um grande mestre, o prof. Paulo Quintela. Ensinou-me a colocar a voz e a alma. Andámos por todo o país a representar “As Barcas”, fiz de Diabo, o papel principal. Levámos ao palco o teatro grego. A “Antígona”, que era algo de subversivo, um hino à liberdade. E fomos às Comemorações Henriquinas de Cabo Verde. O verdadeiro Orfeão Negro! Foi um mês extraordinário. Um povo de enorme riqueza humana, muita gente alfabetizada, embora pobre. Representámos Gil Vicente na praça pública, e o público participava. Batia palmas quando o malandro ia para o Inferno. Lembro-me do El Retablillo de Don Cristóbal. Eu fazia de Don Cristóbal e o Assis Pacheco de poeta. O povo lançava bocas, às vezes improvisávamos, para desespero do Paulo Quintela. Foi uma festa! Quando viemos embora, as pessoas rasgavam-nos as capas e choravam. 

Por falar no Bentes, voltemos atrás e a Águeda para falar também no Hernâni.

O Hernâni era mais velho do que eu, mas ainda o vi fazer uma das jogadas da sua vida, com uma bola de trapos, no Largo do Adro. Sempre sem deixar cair a bola no chão, passou por toda a equipa adversária e entrou pela baliza dentro, uma baliza feita com duas pedras. Ele era meio atarracado, tinha asma, e o meu pai, que nessa altura treinava o Recreio de Águeda, dizia que ele iria ser o melhor jogador português. Aconselhou o pai dele, o Manuel Balreira, que era alfaiate, a levá-lo ao Benfica. O Ted Smith disse que havia muitos como ele e o meu pai teimou: “Enganaram-se!” Depois foi a Coimbra, à Académica, e o Tellechea disse a mesma coisa. E o meu pai voltou a teimar: “Enganaram-se outra vez!” Em seguida, o meu pai treinou o Braga durante uns meses e chamou o Hernâni para um jogo amigável contra a Portuguesa dos Desportos. Estavam lá a ver uns tipos do FC Porto, e esses já não se enganaram.

“No meu país há uma palavra proibida./ Mil vezes a prenderam mil vezes cresceu./ E pulsa em nós como o pulsar da própria vida.”

Qual foi o seu primeiro gesto público de revolta?

É difícil precisar com rigor. Participei em muitas reuniões semiclandestinas, como as do MUD Juvenil, na casa do prof. Bacalhau, em Coimbra. Mas diria que foi uma intervenção na assembleia magna, ainda no velho Palácio dos Grilos, quando foi da invasão de Goa. As esquerdas tinham ganho as eleições, com o Candal, e as direitas queriam forçar a direção da associação académica a apoiar o governo. Claro que mesmo os que defendiam o direito à autodeterminação se encontravam preocupados com a situação dos militares portugueses. Decidi fazer a tal intervenção, empinei três minutos e defendi os estatutos da associação académica, que estabeleciam a autonomia do organismo. Eu levava aquilo muito bem alinhado e ficou decidido que a associação académica não participaria na manifestação. Antes desse dia, participei em muitas coisas. Como na manifestação contra o decreto 90/900, que visava precisamente pôr em causa a autonomia das associações estudantis e integrá-las na Mocidade Portuguesa. Agora, como posição individual pública, que marcaria a minha vida – a partir daí passei a ser um dos tribunos da academia -, o momento foi esse.

E a primeira vez que foi chamado à PIDE?

Eu não fui chamado, fui preso várias vezes pela polícia de segurança. Esse período de que falo era um período no qual estávamos no poder, em Coimbra. Fiz parte de várias listas para a direção da associação académica, listas muito marcadas politicamente. Às vezes tínhamos bons resultados em Direito ou Medicina, mas em Letras, com as raparigas arregimentadas pelas freiras dos lares em que viviam, não corria bem. Até que houve um grande apoio geral à lista de Lopes de Almeida, que foi logo mobilizado. Era prática: todos mobilizados! Uns para Mafra, outros para Angola. 

Aconteceu-lhe o mesmo.

Fui para Mafra, para o curso de milicianos. No fim, devia ser dezembro, vim a Coimbra, e numa reunião das academias, onde estavam umas 400 pessoas ou mais, e na qual falaram o José Carlos de Vasconcelos e o Jorge Sampaio, a malta começou a chamar por mim: “Alegre! Alegre! Alegre!” O Eurico Figueiredo estava ao meu lado e disse-lhe: “Eh pá! Não posso falar porque já sou aspirante.” Mas eles tanto insistiram que eu, de repente, subi para cima de uma mesa e falei. O César Oliveira, no seu livro “Os Anos Decisivos”, conta esse episódio, talvez a primeira intervenção pública sobre a Guerra Colonial. O meu discurso tinha isso por base: “Somos contra, mas quando formos chamados para a guerra, o que é que vamos fazer?” Consequência: estava para ser colocado em Coimbra e, três dias depois, fui para os Açores, para o Quartel dos Arrifes, em Ponta Delgada. O que, naquele tempo, era uma espécie de deportação. Era um isolamento total. Havia um avião de vez em quando, o barco chegava quando chegava, telefonar era uma complicação. Foi aí que conheci o Melo Antunes.

Volta à conspiração.

Chegámos à conclusão que havia ali muitos oficiais suspeitos de envolvimento na Revolta da Sé, outros de terem apoiado a Revolta de Beja. Ou seja, três quartos dos oficiais lá estacionados eram do contra. Reuníamo-nos em casa do António Borges Coutinho, cujo irmão foi presidente do Benfica, que era um palácio extraordinário, e criámos uma comissão patriótica. Começámos a preparar uma operação para tomar conta da ilha e receber lá o general Humberto Delgado. Fizemos contactos com o Continente. O Melo Antunes tinha boas ligações com os paraquedistas e dizia que, uma vez ocupada a ilha, do ponto de vista militar, seria muito difícil perder o comando dos acontecimentos. Fossem quais fossem as consequências, seria uma barafunda e um escândalo internacional.

O que correu mal?

A revolta deveria ter lugar em maio. Houve a manifestação do 1.o de Maio, em Lisboa, uma das maiores de sempre, e logo outra no dia 8. Muitas prisões. Fomos avisados de que não havia, internamente, capacidade para apoiar uma operação daquelas. O Melo Antunes fala nisso numa entrevista à Manuela Cruzeiro: o Delgado não podia chegar ao Açores, mas eu já não recordo a razão. Não veio ele, mas vieram de Lisboa algumas pessoas ligadas às juntas patrióticas. Discutimos entre nós. O Melo Antunes acusava-me de voluntarista e de querer ir para a frente na mesma. Surge a notícia de que o Américo Tomás faria uma visita à região. Comprámos umas resmas largas de papéis, carimbos de borracha, e estivemos umas noites a fazer panfletos. “Abaixo a guerra! Abaixo o fascismo! Fora Salazar!”, etc. Organizámos umas brigadas de militares e civis e distribuíram-se os panfletos pelas casas de toda a gente. Fomos num carro, o Melo Antunes à frente, de camisola preta e cara enfarruscada, pistola pousada no banco ao lado, eu atrás com o Marcel de Almeida, que veio a ser vice-presidente do Benfica, para o interior da ilha. Não se via vivalma e íamos metendo os panfletos por debaixo das portas, com a sensação de que tínhamos mil olhos postos em nós. Foi um escândalo. Mas a PIDE abafou o caso. Passados uns dias fui mobilizado para Angola.

“As colunas partiam de madrugada/ para o norte partiam para a morte/ partiam de Luanda flor pisada/ levavam a morte de Luanda para o norte.”

Como foi esse tempo de Angola? 

Antes de ir fui contactado por um militar que ainda hoje não sei quem é. Foi ter comigo a uma pensão ali no Rossio, credenciado pela Ação Patriótica Militar. Foi ele que me forneceu contactos em Angola. Na altura, o governador era o general Deslandes. O Adriano Moreira tinha prometido uma universidade para Angola, uma velha aspiração dos angolanos. Os poucos que eram licenciados tinham tirado o curso cá, uns em Coimbra, como o Diógenes Boavida, ponta-esquerda da Académica, outros em Lisboa, instalados na Casa dos Estudantes do Império, um viveiro de dirigentes nacionalistas. O Salazar terá vetado a ideia e isso criou um grande mal-estar em Luanda. Então, o Deslandes fez um discurso fortíssimo: “Lembrem-se que nunca nenhum general teve tantos homens sob as suas ordens”. Foi tomado como uma ameaça. Criou-se um clima conspirativo. Fiz os meus contactos com civis e com oficiais do exército, com o Galvão de Melo, comandante da Base Aérea 9, que tinha uma grande admiração pelo Fidel Castro. Perguntou-me: “Quem vai liderar isto?” E eu respondi: “Meu coronel, geralmente, as revoluções são comandadas por quem as faz.” E ele ficou muito satisfeito.

De novo, não correu bem…

Estas coisas não duram muito tempo. Um dia é demasiado cedo, outro dia é demasiado tarde. Mandámos as informações para Lisboa, mas não acreditaram. As revoluções também têm os seus burocratas. Foi o caso. Acharam que era um delírio e as coisas ficaram por ali. Um dos oficiais envolvidos, o major-piloto José Redosa, que eu conhecia bem, um homem muito traumatizado pelo bombardeamento da Baixa do Cassange, no qual tomou parte, uma das grandes barbaridades do regime – cinco mil trabalhadores a reclamarem melhores condições atacados a cargas de napalm -, passou palavra a um camarada, explicou-lhe o que se passava, pediu-lhe segredo, mas o outro não respeitou esse segredo. Houve denúncias. O almirante Leonel Cardoso procurou desdramatizar a situação, mas o tipo insistiu numa queixa oficial. Fomos presos vários. A minha companhia estava em Sanza Pombounha, e eu em Ticuwa, quase no Congo. Tinha apanhado zona, que era uma doença terrível. Fui evacuado. Uma das poucas fotografias que tenho da guerra: cabisbaixo, ao lado dos soldados que me vieram buscar. Mandaram-me apresentar no quartel-general em Luanda, entreguei as armas e enviaram-me para a praia, para me recompor. A PIDE reclamava que eu lhe fosse entregue. Houve certa resistência porque eu tinha sido um bom oficial em situações de combate, elogiado pelos meus comandantes, mesmo sabendo eles que eu era contra a situação militar nas colónias. Certa noite, estava em casa do António Flores, meu amigo de Coimbra e dos Açores, que mais tarde o Melo Antunes enviou como embaixador para a Zâmbia, e apareceram dois oficiais para me levarem. Pediram desculpa por se apresentarem à civil e deram-me ordem de prisão. Tenho um conto – “Uma Carga de Cavalaria” – em que falo nisso. Porque a coisa foi mirabolante.

Bom! Conte, conte.

Eles dizem-me: “O melhor é irmos beber um copo.” Fomos para a Versalhes, juntaram-se vários oficiais, bebemos todos, daí a pouco já havia gente disposta a tirar-me da prisão. Andámos de bar em bar até ser eu a dizer: “O melhor é irmos, senão somos é todos presos.” Passei a noite numa cela a ser comido pelos percevejos e, no dia seguinte, passei à disponibilidade por via de uma ordem assinada pelo coronel Bettencourt Rodrigues. Quando me preparava para sair houve um grupo de soldados que se perfilou. “O meu alferes entrou aqui como alferes e vai sair daqui como alferes.” E saí, à civil, em direção ao carro da PIDE que me esperava com o inspetor Pautier. Fui para os calabouços com a ideia de que tudo poderia acontecer, até mesmo matarem-me. O Luandino Vieira conta esta situação muito bem nos “Papéis da Prisão”. Vivíamos vigilantes de noite, de manhã assobiávamos o “Plaine, ma Plaine”, foi uma grande ajuda. Ele fala de uma noite de tempestade em que ouviu o barulho do meu interrogatório: “Dão cabo do pobre rapaz!” Foram noites e noites terríveis…

“Tenho um relógio em cada gesto/ em todos os meus poros bate a meia-noite/ A eternidade é muito perto ou muito longe/ mas já não passa por aqui.”

Quanto tempo?

Estive seis meses ali. Preservei toda a estrutura clandestina, militar e não só. Ninguém foi preso por minha causa. Foi duro. Nunca sabíamos quando os interrogatórios acabavam ou não. Não sabia se havia denúncias sobre as atividades que tinha levado a cabo. Troquei correspondência com o Luandino. Fiz-lhe chegar esboços de poemas que ele conseguiu pôr cá fora através da mulher. 

Ao fim de seis meses…

Fui libertado. Eles não me podiam levar a julgamento sem levarem igualmente vários militares também envolvidos na conspiração. E isso iria destruir o mito da indefetibilidade das Forças Armadas. Fiquei num limbo: nem me reintegravam, nem me mandavam para a metrópole. Fiquei dois meses nessa situação. Tinha os meus 26 ou 27 anos e pedi uma audiência ao Bettencourt Rodrigues. Estranhamente, concedeu-ma. Com essa idade, um tipo da Rua de Baixo é capaz de tudo. Disse-lhe coisas inconcebíveis, desde que a ética militar tinha sido violada, que a minha entrega à PIDE e a minha situação era insustentável, que ou me mandavam prender outra vez, me reintegravam ou eu fazia um escândalo.

Fez?

Ele avisou-me que eu não estava em condições de fazer ameaças. Mas três dias depois recebi guia de marcha para Lisboa. Vim no Vera Cruz, no mesmo camarote em que veio o Assis Pacheco, ele de baixa, muito traumatizado pela guerra. Colocaram-me em Coimbra, em regime de residência fixa. 

Era um tempo diferente, esse…

Muito diferente. Perdera-se a efervescência das lutas estudantis, tinha havido muita repressão, muitas expulsões da universidade, muita gente chamada para a tropa, muitos fugidos para o estrangeiro, para escaparem da PIDE e da guerra. Era um ambiente sombrio. Mais radicalizado politicamente, mais dividido. Havia uma tristeza no ar. Escrevi-a no “Canto à Nossa Tristeza”. Depois vi aquele filme, “Os Verdes Anos”, e a guitarra do Paredes exprimia muito bem esse sentimento. Uma tristeza contra a tristeza. Passei horas e horas com o meu cunhado, o António Portugal, a ouvir aquela guitarra, aquela música. Tinha vontade de estudar e de ter sossego. Pedi o regime especial de exames, para quem vinha do Ultramar, mas percebi que estava cercado.

“Que o poema assalte esta desordem ordenada/ que chegue ao banco e grite: abaixo a pança!/ Que faça ginástica militar aplicada/ e não vá como vão todos para França”

O exílio tornou-se inevitável? 

Estava no café, ia a caminho de casa, e tinha dois pides sempre atrás de mim. Estava sempre acompanhado. Estabeleci uma relação de grande amizade com o Adriano Correia de Oliveira e ele cantou algumas coisas que eu escrevi e nem estão publicadas, como o “Capa Negra” ou a “Rosa Negra”. Mas era um canto triste. Havia um significado revolucionário nessa tristeza. Fiz um poema em que dizia: “É preciso matar esta tristeza.” Estava proibido de qualquer atividade política, de intervir publicamente, as assembleias magnas tinham deixado o Palácio dos Grilos e passaram para a nova sede da associação académica. Um dia fui assistir a um colóquio e apareceu um tipo jovem a atacar as vacas sagradas da academia. Senti que também era comigo. Não me contive e dei-lhe uma ripada valente!

Quem era o jovem?

Um tipo inteligente e bem-falante: o Francisco Lucas Pires. Com quem vim a ter boas relações. A maior parte dos líderes estudantis tinham desaparecido, a malta estava um bocado órfã, e eu e o Eurico Figueiredo voltámos a participar nas assembleias. O cerco foi-se apertando cada vez mais…

Sentiu necessidade de fugir de Portugal?

Sentia há muito tempo que estava cá dentro como se estivesse lá fora. Ou era preso ou escapava. Um dia, eu e o Adriano íamos a atravessar a Praça da República e ele diz-me: “Lá vêm.” Eram os pides da gabardina. Saíram-me, de repente, os últimos versos da “Trova do Vento que Passa”: “Mesmo na noite mais triste/ Em tempo de servidão/ Há sempre alguém que resiste/ Há sempre alguém que diz não.” O Adriano exclamou: “Escreve isso já, que podes nunca mais escrever nada!” Depois acabei a “Trova” e, num momento de estado de graça, o Portugal pegou na guitarra e começou a tocá-la em música. Mais tarde, numa festa de receção aos caloiros, na Faculdade de Medicina de Lisboa, no Hospital de Santa Maria, para a qual veio o grupo do Portugal, do Zeca Afonso, do Adriano – vim também sem avisar a polícia -, a “Trova” foi cantada por eles e, de repente, já toda a gente cantava o refrão na rua, como um hino. A minha situação agravou-se, fui chamado à PIDE, ao Sachetti. que era de uma boa família de Aveiro e fora colega de liceu do meu pai. Senti que estava condenado. Era irreversível. Custou-me muito. Já tinha estado nos Açores, já tinha estado na guerra, na cadeia… O exílio doía-me muito. Toda a minha poesia dessa altura exprime esse meu espírito. 

“Aquela clara madrugada que/ viu lágrimas correrem no teu rosto/ e alegre se fez triste como se/ chovesse de repente em pleno Agosto.”

Fale-nos da fuga…

É curioso. Um amigo de juventude da minha mãe, que vivia em Angola, monárquico, avisou a irmã, que vivia em Coimbra, de que eu iria ser preso. É essa senhora que vai a minha casa avisar-me. Nessa noite durmo em casa do Cortesão e vou no dia seguinte para Lisboa, onde o poeta João José Cochofel me deu guarida. Arranjaram-me um passaporte falso e ele levou-me para o Norte, para a quinta da família do Rui Feijó – fiquei lá dois ou três meses. Numa tarde chegou o Adriano para falar com a Luísa. Fiquei na dúvida se lhe aparecia ou não. Apareci. E ele trazia a primeira prova da “Trova do Vento que Passa”, em disco. Levei-a comigo. Embora não quisesse, fui obrigado a sair do país, até porque podia começar a pôr muita gente em causa. Fugi através da propriedade dos Montalvão Machado. Fui ajudado por um galego que tinha sido salvo de morrer fuzilado na Guerra Civil de Espanha por um republicano de Mirandela. Almocei no restaurante dele, e eu e o Júlio Montalvão Machado ouvimo-lo discutir com a mulher. Ela queria que ele fosse levar a filha ao colégio. E o galego respondia: “Se não tivessem feito por mim o que vou fazer por este senhor, não havia colégio ni hija ni el carajo!”

 Passou a fronteira a pé.

Sim, num sítio onde havia um ribeiro muito estreito, junto de um posto da Guarda Fiscal. Ainda me molhei um bocado. A desculpa era que iria ao médico a Verín. Um caseiro levou-me, depois, de carro para um ponto onde devia encontrar-me de novo com o galego. Ele nunca mais aparecia e eu fumei um maço de cigarros. Finalmente, lá ouvimos buzinar e era o galego. Fui com eles até Valhadolid, onde me juntei a uma malta de Águeda, entre os quais o eng.o Pato. Daí para França. 

Qual foi o momento mais duro do seu exílio?

Foi quando atravessei a fronteira. O Júlio Montalvão Machado disse, mais tarde, ao Mário Soares que já tinha atravessado vários, mas que eu fui o primeiro que ele viu com lágrimas a escorrerem pela cara abaixo. Sabia que era o passo decisivo.

Sem retorno.

Esse é o momento mais duro. Depois, em Paris, fui à procura da malta portuguesa. Em Saint-André des Arts encontrei logo gente conhecida, alguns de Coimbra, e fui dormir para casa do Victor Sá, que estava a fazer um doutoramento. Até que o Paulo Jorge, que veio a ser ministro dos Negócios Estrangeiro de Angola, me arranjou a licença de trabalho. 

Finalmente, Argel…

Fui para participar na iii Conferência das Frentes Patrióticas. E fui convidado para ficar a trabalhar na Rádio Voz da Liberdade. 

Argel era um centro revolucionário, na época.

Havia uma grande abertura para receber os movimentos de libertação. Era um verdadeiro “carrefour” revolucionário. Toda a gente que tinha a ideia de libertar o mundo ou, simplesmente, o seu país, ia lá parar. Angolanos, moçambicanos, cabo-verdianos, Panteras Negras, tipos da Frente de Libertação do Quebeque. Tudo! As pessoas eram recebidas com grande solidariedade e havia algo de fundamental: respeito pela autonomia. Claro que entre os exilados há sempre querelas, mas nunca os argelinos intervieram nas nossas questões. Nunca houve qualquer espécie de censura! Nunca, que tenhamos dado conta, houve qualquer supervisão sobre o que se dizia na Voz da Liberdade. Eles, que se bateram duramente pela independência, consideravam essa palavra sagrada. Tivemos uma vida difícil em Argel, porque eles davam-nos ajuda mas também não tinham condições para nos dar uma grande ajuda, porque estavam a sair da guerra e a construir um país.

Conheceu lá muitos revolucionários? Como o Che Guevara…

Sim, conheci. O Che foi mais para diante. Conheci todos os dirigentes nacionalistas das antigas colónias. De dois deles fiquei grande amigo: do Agostinho Neto e do Amílcar Cabral. 

E o Che?

Ouvi o famoso discurso dele em que criticou os dois imperialismos, um discurso muito célebre na altura. Duplamente revolucionário, porque era uma crítica ao imperialismo americano, mas também aos equívocos da União Soviética. Ele vivia numa casa onde estavam muitos exilados, chilenos, venezuelanos. Mais tarde, quando li o livro “O Ano em que Estivemos em Parte Nenhuma”, percebi que muitos deles faziam parte do grupo que combateu no Congo.

É nesse tempo que nasce a sua paixão pelo Benfica?

O meu clube do coração, o primeiro, é e sempre foi a Académica. Mas a Académica do meu tempo era uma coisa muito diferente daquilo que é hoje. Eram estudantes, alguns já formados, etc. Todos nós, em Coimbra, nos reconhecíamos na equipa de futebol. Agora, é no exílio que nasce, de facto, a minha simpatia e depois paixão pelo Benfica. Portugal era um país muito isolado, condenado por todas as instâncias internacionais, malvisto… Lembro-me, por exemplo, de um momento desagradável, passado em Bruxelas, na ocasião de um Bélgica-Portugal. Quando tocou o nosso hino, muita gente começou a assobiar. Eu e o grupo que estava comigo pegámo-nos com alguns belgas. Foi preciso explicar-lhes que era o hino da República, o hino nacional, que nada tinha que ver com o Salazar. O Benfica, campeão europeu, com Eusébio e Coluna, fazia uma ponte entre todos. O regime era muito criticado, havia um apoio internacional forte aos antifascistas, e o Benfica transformou-se num elo de ligação das comunidades portuguesas. E até um elo de ligação entre aqueles que estavam em guerra. Entre nós, refugiados portugueses, angolanos, moçambicanos, etc., etc. Mesmo os que lutavam pela independência das colónias gostavam do Benfica. Gostavam do Eusébio, do Coluna e do Benfica. Como, aliás, gostavam da seleção nacional do Campeonato do Mundo de 1966, em Inglaterra. Vi o Portugal-Coreia do Norte em casa do Tito de Morais com alguns membros do MPLA e do PAIGC que torciam por Portugal.

“E havia uma rua. Havia uma casa./ Havia um cesto de cerejas sobre a mesa./ Havia um puro cheiro a pão. Uma varanda/ e roupa branca a secar./ Havia uma pátria.”

Teve, lá fora, a noção da importância que a “Praça da Canção” tomou em Portugal?

Já tinha percebido que alguns daqueles poemas, que já tinha lido entre grupos de amigos, em reuniões culturais, tocavam as pessoas. A escrita desses poemas não é hoje, para mim, uma coisa fácil de explicar. Li um texto do Mandelstam no qual diz que há momentos em que a História acelera. Acelera por ela e acelera dentro das pessoas. Aqueles poemas estavam no ar. Estavam no ar! São coisas genuínas, quase instintivas. Coisas mágicas. Mas tinha a consciência de que estava a exprimir algo que ia tocar as pessoas. Era uma convicção profunda. Talvez não da maneira como aconteceu. Fui tendo sinais, críticas que me chegaram, cartas. Não estava cá para viver isso. Fui sabendo, pouco a pouco. Fui sabendo o que tinha sido a “Praça da Canção” para muita gente. 

Veio a Portugal clandestinamente?

Não. A Portugal, não. Fui a Espanha. Portugal, nunca.

“O Canto e as Armas” está a completar 50 anos. Como vê a “Praça da Canção” e “O Canto e as Armas” no universo da sua obra?

Foram dois livros que marcaram uma ou várias gerações. Pelo que oiço dizer e por aquilo que me foi chegando. A “Praça da Canção” não é um livro panfletário. Nem é um livro político. Mas é um livro que teve consequências políticas. Despertou muitas consciências e libertou muito do que estava dentro das pessoas. Os poemas sobre a liberdade, os poemas sobre a guerra. Os mitos históricos dos quais o regime se tinha apoderado para se legitimar. Assumo-os noutro sentido. Além da estrutura, que vem dos cantares de amigo, da toada camoniana, mas integrando algumas das conquistas da poesia moderna, nomeadamente dos surrealistas. Há muitas imagens que têm que ver com isso. Algumas do Cesariny, outras do Carlos de Oliveira. A “Praça da Canção” tem uma estrutura rítmica muito própria. “O Canto e as Armas” já inclui muitos poemas escritos no exílio. Mais poemas sobre a guerra. Talvez seja um livro mais elaborado, mais pensado, mais ambicioso, menos instintivo. Também aprendi. Os anos passaram e evoluí em termos de escrita. Os poemas foram cantados. O Adriano fez um disco chamado “O Canto e As Armas”. São dois livros míticos e considero-os, por isso, um fenómeno. Um fenómeno único e irrepetível do séc. XX. 

O Manuel Alegre é um homem transversal. Tem a sua parte poética, tem a sua parte política. Junta-lhe o romantismo. E é um intelectual que não vira as costas a coisas que parecem ser estigmas para a intelectualidade portuguesa, como o futebol, a caça, a pesca…

Fazia bem, a muita dessa gente, caçar e pescar. Fazia-lhes bem nadar. A muitos faz falta esse lado da vida em contacto com a natureza. E despirem-se do politicamente correto. 

Essa aura do romantismo esteve muito marcada na sua primeira candidatura à Presidência da República.

Houve uma candidatura pioneira da cidadania que foi a da Maria de Lurdes Pintasilgo. Mas ela teve 7% e eu tive quase 21. E fiquei a 29 mil votos da segunda volta. É algo que muitos jornalistas esquecem com frequência. Ou não querem lembrar. Essa candidatura abriu, de facto, caminho para muitos movimentos de cidadãos. Muita gente que se junta em grupos de cidadãos em Lisboa, em Coimbra, no Porto, esteve na minha campanha. Foi a primeira vez que um movimento de cidadania alcançou um resultado daquela envergadura. Eu não saí do Partido Socialista. Havia outra candidatura que era nem mais nem menos que a do Mário Soares. Por um efeito qualquer absurdo, todas as outras candidaturas de esquerda estavam contra a minha. E foi um momento de festa fantástico. Tanta gente queria participar e não sabia onde participar. Queria libertar-se dos partidos ou das decisões dos dirigentes partidários. Eu não me candidatei contra os partidos, candidatei-me pela independência. A Constituição está aí para dizê-lo: as candidaturas à Presidência da República não estão dependentes de decisões partidárias. É um ato pessoal. Um ato pessoal! Um partido pode aprová-lo, querer apoiar ou não apoiar, mas a decisão é pessoal e é isso que está correto. A minha candidatura foi de um entusiasmo fantástico! Havia quem dissesse que parecia um 25 de Abril. Foi algo muito bonito, muito genuíno e inesquecível.

Provocou-lhe divergências com Mário Soares, de quem era muito amigo.

Eu quero falar do Mário Soares. Para dizer, primeiro, que a sua morte me custou muito. Apesar de todas as divergências, resolvemos as coisas e voltámos a ser amigos. Foi, sem dúvida, o mais cúmplice de todos os meus camaradas políticos. Seja pelos gostos, literários até, seja pela forma como encarávamos a vida. Havia, entre nós, uma grande ligação. A sua morte magoa-me muito. 

O que falhou na sua segunda candidatura?

Não devia ter acontecido. Não devia ter voltado a candidatar-me. Se fosse hoje, não teria sido candidato de certeza absoluta. Mas, às vezes, ficamos prisioneiros das nossas próprias circunstâncias. Criou–se ali uma… geringonça da qual não consegui fugir. A certa altura disse a algumas das pessoas que me estavam mais próximas: “Vou abandonar isto!” Porque percebi que estava a receber apoios muito ambíguos.

Por parte do Partido Socialista?

Sim. O apoio do Partido Socialista foi ambíguo e foi uma armadilha. A minha segunda candidatura foi um erro. Quando falo de ambiguidade, não me refiro ao povo socialista, à base socialista, junto da qual sempre tive, e tenho ainda, muita popularidade. Mas, para os dirigentes, fui sempre um tipo incómodo. Por ser como sou, por muitas vezes votar de acordo com a minha consciência e não me sujeitar às regras aparelhísticas. Por ser totalmente independente e, até, mais à esquerda, mais socialista do que era conveniente para alguns quadros do partido. A verdade é que não tenho dúvidas de que, tanto na primeira como na segunda candidatura, houve alguns que prefeririam ter Cavaco Silva na Presidência do que eu. Ele ganhou, por mérito próprio, mas o PS ajudou. Quero é ressalvar, aqui, o papel de amizade e competência que tiveram Duarte Cordeiro e José Manuel Mesquita. Foram sempre absolutamente inexcedíveis. 

Agora, a reforma…

Há um tempo para tudo. Saí da Assembleia da República por vontade própria já há uns anos. Saí no momento adequado e tive a oportunidade de explicar porquê. Tive a consolação de ter sido aplaudido de pé por todas as bancadas e receber umas palavras muito bonitas do Jerónimo de Sousa. Não esqueço! Aquele era o momento de sair. Sinto-me bem com isso.

Consegue ocupar o seu novo tempo livre? Escreve mais? Lê mais?

Não é por aí. Tenho é mais tempo para mim mesmo. Tenho a idade que tenho e acho que mereço o direito a uma certa disponibilidade interior. Faço o que me apetece. Se me apetece ler, leio; se me apetece escrever, escrevo. Vou à caça quando posso, passeio, falo muito ao telefone. Hoje não há cafés como antigamente, nos quais as pessoas se juntavam para conversar, para trocar ideias. Faz muita falta, faz muita falta! Por isso, uso mais o telefone. Só numa situação de catástrofe é que voltaria a ter uma posição política. Não quer dizer que não intervenha, aqui e ali. Ainda há pouco fiz um discurso no Porto, na comemoração do dia 31 de Janeiro. Posso dar uma entrevista e abordar certos temas, mas não estarei mais ativo. E está fora de causa aceitar qualquer tipo de cargo. Estou muito bem como estou!

“Porque nem sempre tive a tua idade./ Eu já fui rei de cada instante e já cantei/ na tua imensa imensa eternidade.”

Chegou aos 80 anos, olhou para trás e concluiu o quê?

Vivi a vida que tinha de viver. A vida não se rebobina. No essencial, teria feito as mesmas coisas. Tive uma vida intensa, tensa e densa. E fico com a sensação de que vivi várias vidas numa vida. O Rimbaud dizia “je est un autre”. Eu direi que fui vários outros. E pergunto-me, às vezes, como foi possível, sobretudo quando era mais novo, ter estado envolvido e ter protagonizado determinadas situações. Numa idade mais avançada, quando temos mais bom senso – que é algo que não sei bem o que é -, maior prudência, sentimos que há coisas que não deveríamos ter feito. Mas foram coisas que me enriqueceram. Costumo dizer que a aparente divisão da minha vida faz a sua unidade. A escrita e a ação. A escrita e a intervenção. Nunca fui um político politiqueiro. Tive, nos períodos da resistência, do exílio, uma sensação de que estava a intervir na História. Isso sucedia com muitos de nós. Essa ideia de que estávamos a fazer parte da História ou a ajudar a mudar a História. 

Não mudava nada do passado?

Talvez… se voltasse atrás, teria saído mais cedo ainda da política ativa, logo a seguir à primeira candidatura. Mas esses são balanços feitos a posteriori. Houve romances dentro da minha vida. Às vezes tenho dificuldade em escrever ficção porque muito do que me aconteceu parece a própria ficção. Muita da minha realidade foi mais imaginativa do que qualquer ficção. Daí que os livros que escrevi, em prosa, tenham um cunho autobiográfico, pelo menos no cunho da vivência. Como na “Jornada de África”. O alferes Sebastião. Ele e os companheiros com os nomes daqueles que foram para Alcácer-Quibir. Os nomes de Alcácer são os nomes portugueses. Os nomes de Alcácer estiveram todos na Guerra Colonial. Onde esteve também o Sebastião. O Sebastião foi o país.

Nessa viagem da vida, chegou onde queria?

Não é uma questão de chegar onde se quer. Nunca chegamos onde queremos. Há coisas que ficam por fazer. Tive, como disse, uma vida intensa, uma vida dura, por vezes muito dura. A guerra foi uma experiência duríssima. A malta nova de hoje não faz ideia do que era. Não havia telemóveis nem computadores, havia os aerogramas que se enviavam quando aparecia transporte. A prisão foi dura. O exílio, muito, muito duro. Fui para o exílio lutar pela liberdade no país. Quando saíamos de Portugal não sabíamos quando iríamos voltar ou mesmo se alguma vez iríamos voltar. Eu fazia parte da chamada “bíblia da PIDE”, uma lista daqueles que eram mais perigosos. Estive dez anos em Argel, por entre um povo muito simpático mas com muitas diferenças culturais. Um exílio dentro do próprio exílio. Que também teve as suas coisas boas. Foi em Paris que conheci a minha mulher (Mafalda), foi na Argélia que nasceu o nosso primeiro filho (Francisco). Os outros (Afonso e Joana) já nasceram cá e são da Rua de Baixo. O período áureo da vida, aos 37 ou 38 anos, passei-o no exílio. mas conheci mais mundo, mais gente. Corri riscos, mas alarguei os horizontes. Estive com pessoas que pertencem à História. Tudo isso fez de mim aquilo que sou.

“Chegam palavras como sinos a tocar:/ Há fogo em Sintra. Greve no Barreiro./ E chegam de Águeda palavras de há vinte anos:/ Mataram no Gravanço o filho do moleiro./ E o Ti Fausto a dizer: Se ainda houvesse republicanos…/ Chegam palavras com o Alípio e o Botaréu/ palavras de Águeda com sinos a dobrar/ pelo Ti Fausto que já morreu que já morreu.”