Marina Perezagua. “Foi preciso um abanão para percebermos que o fim do mundo é uma possibilidade”

Marina Perezagua. “Foi preciso um abanão para percebermos que o fim do mundo é uma possibilidade”


Nascida em Sevilha, em 1978, Marina Perezagua estreou-se no romance com “Yoro”, livro que  lhe valeu um dos prémios mais importantes do mundo hispânico.


Publicado em Portugal no final do ano passado, antes de chegar a uma série de outros países onde os direitos já foram comprados, “Yoro” é o primeiro romance de Marina Perezagua e o mais difícil é apresentá-lo. Cada um dos temas em que toca facilmente intimidam ou provocam vertigens, mas ela encontrou uma forma de os libertar do cerco de lugares comuns, de ir às páginas mais negras dos livros de história sem fazer disso um regresso. Pelo contrário, a escrita de Perezagua é atual e alarmante, sente-se o seu respiro na nuca. Um relato que se oferece ao juízo do leitor como a expiação de um crime: uma mulher que não nos passa toda a informação porque sabe que um juízo apressado só poderia condená-la. Monta um puzzle paciente, embora doloroso, ao longo de um arco histórico compreendido entre a manhã de 6 de Agosto de 1945, quando todos os relógios de Hiroshima pararam na mesma hora – 8h16 -, e vem até aos nossos dias. A bomba nuclear e o horror que libertou é só o começo, e este livro não é sobre o que já sabemos nem o que podemos imaginar. É um mergulho em águas mais profundas, nas consequências imprevistas da devastação. A protagonista apresenta-se como H, não só a primeira letra da cidade onde o Homem quis um vislumbre do fim do mundo, mas também a letra que é muda em tantos idiomas, tal como ficaram mudas tantas das vítimas do “Little Boy”. Perezagua revela uma capacidade de encontrar a beleza mais difícil, traduzindo a experiência íntima das suas personagens e como o bem encontra um caminho nas piores circunstâncias. A linha que sustenta o romance é, por isso mesmo, uma história de amor. O i entrevistou-a na Póvoa de Varzim, onde voltou a realizar-se o Correntes d’Escritas. Perezagua foi uma presença discreta, atenciosa, uma das raras aparições que emprestou à 18.ª edição do evento algum proveito face à fama de festival internacional de literatura. Eram tantos os escritores, tanta a azáfama, que poucos terão tido a oportunidade de conhecê-la um pouco. A publicação de “Yoro” está a ser preparada ao detalhe nos EUA para o início de 2018, talvez então fique claro como passou entre nós uma das mais espantosas vozes reveladas já neste século.

A sua escrita tem tonalidades poéticas e percebe-se como a pesquisa histórica é filtrada por uma linguagem metafórica que torna certos acontecimentos traumáticos em experiências internalizadas por si. É importante que a sua escrita prossiga uma condição humanitária?

Antes de mais, não gosto de escrever aquilo a que hoje chamam não-ficção ou auto-ficção. Portanto toda a pesquisa para escrever o livro é feita como forma de criar um cenário para a história que imaginei. Estou consciente de que as temáticas que abordo são bastante duras. Sinto que se internalizar estas questões de uma forma mais poética posso ajudar a criar um relato mais empático. Gosto de trabalhar com o horror, mas atenuando-o através de uma visão poética.

Publicou dois livros de contos – “Criaturas abisales” (2011) e “Leche” (2013) – antes deste seu primeiro romance. Mas sendo a poesia tão importante nas suas leituras, começou por escrever poemas?

Não, nunca. Não sei porquê, mas tenho uma tendência para esconder-me atrás do que escrevo, e na poesia sinto que estaria mais visível, a minha personalidade e identidade. Sentir-me-ia mais exposta. Os amigos dizem que me lêem a mim nas coisas que escrevo, mas tenho esta ideia de que quem chegar aos meus livros, nunca descobrirá quem eu sou, porque nunca escrevo sobre aspectos auto-biográficos.

O que a atraiu para as experiências de pessoas que foram sujeitas a situações inimagináveis e a um terrível sofrimento, como as vítimas da explosão nuclear em Hiroshima?

Também vivi experiências terríveis, mas de alguma forma nunca perdi a confiança. As pessoas que nalguns momentos da minha vida me apoiaram, amigos, professores, etc., dizem-me que é um milagre não me ter perdido. Mas sempre senti, apesar de tudo, uma alegria, felicidade ou esperança, e mesmo nos momentos piores fui conseguindo encontrar cá dentro uma pequena luz que me incitava a sobreviver. É o que faço com os meus personagens, se os coloco nas situações mais terríveis, finalmente eles acabam por salvar-se a si mesmos. Penso que isto tem algo a ver com a minha própria vida, mas sinto-me bastante sintonizada com o sofrimento que vejo ao meu redor.

Como começou a sentir-se intrigada com a bomba nuclear e a cadeia de horrores que desencadeou?

Tive um namoro com um japonês durante uns seis ou sete anos e passei bastante tempo no Japão. Já tinha lido “Hiroshima”, de [John] Hersey – o primeiro livro escrito por um americano sobre a explosão, ele esteve lá logo depois e descreveu o que viu -, mas estava no país e comecei a fazer perguntas a partir da minha mentalidade ocidental à família do meu namorado, o tipo de perguntas que tinha feito à minha avó sobre a Guerra Civil espanhola. Quis saber como foi a experiência do país depois de Hiroshima, como lidaram com todo aquele desastre. O meu namorado ficou sem falar comigo por uns três dias, ficou zangado, censurou-me por eu ter feito aquele tipo de perguntas, sobre um tema que é um tabu. Não é que os japoneses não recordem o que aconteceu, há uma cerimónia todos os anos a assinalar aquela data, mas as pessoas não querem falar sobre o que aconteceu. E isto teve um tal impacto em mim… É claro que tinha lido testemunhos de sobreviventes e muitos artigos sobre o assunto, mas o facto de as pessoas não quererem falar sobre aquele facto terrível no seu passado causou-me uma grande impressão. Por qualquer razão relacionei isso com os ataques do 11 de Setembro. É claro que o sofrimento de um ataque nuclear é incomparável, mas ainda assim estive no Ground Zero, vi um vazio imenso na cidade, e esta dor acordou em mim um desejo de escrever sobre Hiroshima e, ao mesmo tempo, sobre o que se passava nos EUA, até porque foi ali que nasceu o Projecto Manhattan [projecto de pesquisa que produziu as primeiras bombas nucleares]. Quis falar a partir dos dois lados.

Pelo que conta do relação dos japoneses com Hiroshima eles parecem querer preservar a sua dor em silêncio, ao passo que no Ocidente, mesmo em relação a traumas como o Holocausto, parece existir o perigo de se falar demais, de a dor ser abafada pelo ruído.

Parece-me que sim. Em certos momentos pareceu-me que a mentalidade japonesa era de tal modo espinhosa, e eu viajei bastante no país, e o que senti foi que para lá de um certo ponto simplesmente não me era possível entender, deixei de fazer um esforço para compreender a forma como encaravam certos acontecimentos. Parecia que o próprio cérebro trabalhava de forma diferente. Tive de respeitar que fizessem a escolha de lidar com determinados assuntos através do silêncio. A mesma coisa se passa com algumas pessoas. Há pessoas mais expressivas em relação às experiências dolorosas que enfrentaram. No entanto, parece-me que pode ser perigoso para uma nação uma vez que a história pode repetir-se. Por outro lado, também não pretendo que estas questões sejam trivializadas. Hoje parece-me que há inúmeros filmes sobre o Holocausto, alguns fazem-se valer da dor em obras supérfluas. Mas a reação no Japão continua a ser extremamente problemática, mesmo de um ponto de vista ético. Por exemplo, o meu livro anterior era de contos, “Leche”, e quando o publicaram no Japão foram muito cuidadosos e o livro teve até bastante sucesso, mas quiseram retirar o último conto, precisamente o que dava o título ao livro, e que fala sobre o massacre de Nanquim [China], um facto histórico que até hoje os japoneses não reconhecem. Queriam que o livro assumisse o título do primeiro conto, “Little Boy”. O editor japonês dizia que tudo não passava de uma mentira. Inicialmente recusei, mas depois aceitei porque, assim, se um dia voltar ao Japão, terei a oportunidade de falar sobre isto.

Outro aspecto da criação da protagonista do livro, H, é que a bomba lhe dá a oportunidade de redefinir o seu género. O questionamento da diferença entre os sexos parece ser um conflito que emerge e está em linha com a tendência nos dias de hoje para se romper com a dualidade dos géneros.

Gosto bastante de híbridos, em todos os sentidos, seja na natureza, no reino animal, pessoas, o que for. Também no que toca à sexualidade, é claro. Mas o ponto é que não queria contar uma história sobre a Guerra, os grandes temas, queria torná-lo um pouco mais complexo, e íntimo. O desafio era perceber como é que podia tratar um desastre tão grande como Hiroshima, onde ela perdeu a família, a casa, tudo o que tinha, mas como é que eu podia fazer para que ela tivesse, apesar de tudo, algo pelo qual estar agradecida. Aquilo que decidi foi que ela teria nascido intersexual, e a família decidiu que ela seria um rapaz, mas quando a sua identidade começou a revelar-se ela sentia-se uma mulher, e não gostava da parte do seu corpo que a identificava como homem. É por isso que, a certo ponto, ela diz que de todas as pessoas que conheceu, de todas as pessoas que me amaram, foi a bomba a única que me viu como eu realmente queria ser, porque a bomba explodiu e desfez-lhe o sexo. Esta foi uma forma para mim de aceitar que algo de terrível tinha acontecido mas ainda assim buscar uma luz dentro do horror.

Uma expressão que usa repetidamente no livro é a de que os sobreviventes tinham a bomba dentro de si, como se estivessem grávidos. Don DeLillo diz que após a explosão das bombas em Hiroshima e Nagasaki a humanidade passou a viver num estado de paranóia. A certa altura diz no livro que hoje existem 20 mil bombas mais potentes do que aquelas. Sente que vivemos ainda num estado de paranóia ou parece-lhe que as pessoas preferem ignorar esta realidade, e vivem por isso numa espécie de indiferença?

Parece-me ainda cedo para ter a certeza, mas julgo que precisávamos da eleição de Trump para destruir o mundo, e assim podermos reconstruí-lo. Desde que nasci nunca vi uma tão grande união popular contra um líder ou uma ideologia. É óbvio que ele é uma figura terrível, mas o que ele está a provocar na sociedade parece-me positivo. Precisávamos de um abanão que nos fizesse perceber que o fim do mundo é uma possibilidade. Este tipo é verdadeiramente louco, e se o desejar poderá colocar-nos no meio de uma guerra mundial. Estaríamos perdidos. Antes do Trump eu sentia que estávamos cada vez mais a carregar a bomba dentro de nós, mas agora pode ser que encaremos a face do horror e tenhamos medo. Ainda vamos a tempo de mudar as coisas. Hoje percebemos o risco de passarmos por um Holocausto. Neste momento tenho vizinhos que denunciaram outros vizinhos porque eram ilegais.

Isto aconteceu no seu prédio, em Nova Iorque?

Sim. Eu vivo num bairro em Queens bastante pacato. Quando me mudei para lá era uma zona de gente remediada, mas o nível tem vindo a subir e está cada vez mais perto da classe média. É o ponto do planeta onde se cruzam mais idiomas. E agora, num prédio onde nunca houve um conflito entre os vizinhos, de um momento para o outro houve um tipo que pendurou uma bandeira a assinalar o apoio ao Trump e depois denunciou os vizinhos por não estarem legalizados. Parece um filme sobre os nazis. Mas o problema talvez esteja no facto de nos EUA não haver uma consciência histórica. Nas escolas não ensinam História. Tinha visto isto nos filmes e nunca pensei que pudesse acontecer tão depressa. Era um vizinho com quem eu falava, mas depois de ver a bandeira já não consigo. É a mesma pessoa, mas para mim mudou tudo.

Como é viajar após a publicação dos seus livros? As reações são diferentes consoante os países?

Depois da publicação de “Leche” no Japão as reações foram bastante boas. Houve elogios ao livro dizendo que a autora escrevia como uma japonesa. Nas diferentes partes do mundo é difícil falar, porque “Yoro” ainda só chegou a Portugal. Estão ainda a preparar a publicação na Alemanha, Polónia, Bulgária, França. Em Itália sairá dentro de dois meses. Nos EUA sairá pela Ecco Press [chancela do gigante HarperCollins], e lá eles estão a pôr em marcha uma grande campanha de promoção. Primeiro querem ter as notícias nos jornais, e só chegará às livrarias no início de 2018. Não é como na Europa, em que há muitas editoras que assumem riscos em nome da qualidade. Nos EUA eles querem assegurar-se de que vão ter lucro. Estou-lhes muito agradecida, mas sei que se me vão publicar é porque acreditam que podem fazer dinheiro com o livro. Já na Alemanha senti que os editores estavam muito entusiasmados. Senti que não se preocupavam tanto com a forma como o livro seria promovido. Também o meu editor espanhol assumiu um grande risco. Ninguém me conhecia, eu só tinha contos. Ele sabia que ia perder dinheiro. Tenho a certeza que perdeu dinheiro com os meus primeiros dois livros.

Como começou a escrever?

Era uma forma de criar um escape. Criava personagens. O que eu gostava mesmo de fazer era pintar. Quando era criança sempre tentei pintar, era algo que me relaxava. Mas aquilo que me saía era realmente uma lástima. Percebi que não tinha o menor talento para a pintura.

Mas era apenas uma questão de prazer, sem quaisquer ambições artísticas?

Sentia-me um pouco frustrada. É como teres gosto em cozinhar, gostares do processo, mas depois quando provas a comida sabe mal. (Risos) Dava-me bastante gozo, mas depois, ao provar, a alegria acabava. 

Que idade tinha?

Sete ou oito. Depois comecei a escrever. Mas queria ser outras coisas na vida. Nunca me imaginei como escritora. Mesmo quando comecei a publicar… A razão porque o fiz foi por ter encontrado certa vez um livro de cuja edição gostei muitíssimo. Googlei a editora e descobri que era bastante pequena. Era bastante realista, não me passava pela cabeça enviar o livro para uma grande editora. Enviei o manuscrito por correio normal. Depois esqueci o assunto. Sabia que era difícil receber uma resposta positiva. Mas três meses depois recebi um email em que o editor dizia que tinha adorado o livro e queria publicá-lo. Ele nem sabia a minha idade. Veio a França, onde eu vivia então, para assinarmos o contrato. Foi maravilhoso. Hoje as pessoas dizem que ele se apercebeu que acabaria por ser uma aposta rentável, mas eu sei que não. Que foi um absoluto risco. Tenho de lhe estar agradecida porque foi ele que tornou tudo isto uma realidade.

Como é que ele se chama?

Enrique Murillo. É bastante conhecido em Espanha. A fama precede-o porque trabalhou para grandes editoras, mas depois quis fazer uma sua, definir as regras do jogo. Chama-se Los Libros del Lince.

“Yoro” foi um grande sucesso em Espanha?

O que se passou foi que “Leche” tinha já tido algum sucesso, mas a editora era bastante pequena e por isso o livro não estava disponível na maioria das livrarias. A distribuição era realmente muito má. Mas a situação alterou-se com “Yoro” porque entretanto a Malpaso, uma editora bem maior, comprou a Los Libros del Lince e este livro tornou-se bem mais visível. E só tínhamos enviado o livro para dois prémios, um deles o da Feira de Guadalajara, o Sor Juana Inés de la Cruz, um dos maiores prémios no mundo hispânico. É só para mulheres mas é excelente para um primeiro romance. Nunca pensei que o ganhasse porque tinha a concorrer comigo Elena Poniatowska, que é bem mais velha, mexicana… Foi muito importante para o sucesso do livro. Mas é algo que ninguém podia prever.

Há também a questão paralela da sua prática de mergulho em apneia e de ter passado depois para nadar longas distâncias. Pode explicar o que aconteceu?

Umberto Pelizzari, um especialista, diz que quando mergulhas com uma garrafa de oxigénio o usas para olhar à tua volta, e quando praticas mergulho em apneia usas o oxigénio no teu corpo para olhares para dentro de ti mesmo. Se te treinares para não gastar o oxigénio que tens dentro, tens de zerar as actividades no teu organismo, incluindo o pensamento.

Até que profundidade mergulha?

Vou até aos 45 metros. Depois disso o problema não é a falta de oxigénio mas a pressão da água. Abaixo dos 30 metros precisei de aprender outras técnicas para compensar o problema da pressão, que causa dores nos ouvidos.

Não faz isto por competição?

Não. A maioria das pessoas que compete não pode fazer outra coisa senão dedicar-se inteiramente a esta modalidade. Seria um suicídio ter uma vida ocupada e depois tentar competir nesta modalidade. É preciso estar muito concentrado. Não se pode trabalhar no ambiente stressante de um escritório e depois mergulhar em apneia. É perigoso.

Quanto tempo consegue ficar submersa?

Depende. Se ficar estática, aguento quase seis minutos. Mas isto é basicamente ficar a boiar mas virada para baixo.

Seis minutos…!

Se treinar não é assim tanto. Tens oxigénio não apenas nos pulmões mas em todo o corpo. Quando começas a sentir falta de ar, na verdade o que se passa não é que já não tenhas oxigénio. Ainda tens e muito. O que se passa é que tens também muito monóxido de carbono e é isso o que te faz sentir desconfortável. Portanto, é um alarme falso. O limite é bastante além disso. O recorde actual vai nos 12 minutos. Há um momento a partir do qual te sentes realmente aflito, em que te parece que não vais aguentar, mas é quando ultrapassas esse limite que te sentes no paraíso. É como uma droga, não sentes falta de nada. É a melhor sensação.

Portanto para si isto é uma forma de ficar mocada?

Tenho alguns problemas de ansiedade. Já não tenho tanto por causa disto, mas sofria bastantes ataques de pânico, especialmente depois do 11 de Setembro.

Estava em Nova Iorque quando as torres caíram?

Comecei a viver lá três meses depois.

Porque é que estava sempre a viajar?

Até aos meus 18 anos estava com amigos, tinha uma vida muito agitada. Estive com Irvine Welsh, o autor de Trainspotting, em Guadalajara, e disse-lhe que a minha vida em tempos foi como a dos personagens no livro dele. Com a diferença de que não tomava drogas. Era boa aluna, mas quando entrei na universidade comecei a ganhar várias bolsas de estudos. Fiz Erasmus, andei por vários países. Entre os meus amigos eu era a especialista a quem recorrer para saber como ganhar bolsas. Depois, a maior que ganhei foi para o PHD nos EUA.

O que estudou?

Literaturas hispânicas. Teoria literária.

Mas a certa altura começou a fazer grandes distâncias a nado. Atravessou o Estreito de Gibraltar em menos de quatro horas… E de algum modo isto está ligado a ter deixado de escrever contos e ter começado a escrever romances?

Sim. O que aconteceu foi que levava bastante a sério o mergulho em apneia quando estava a viver em França, na região de Lion. Lá é um sítio óptimo para esta modalidade, porque as águas são calmas, há clubes de mergulho, é feito com muita segurança. Quando cheguei aos EUA, certo dia estava fazer piscinas mas fazia-o sem respirar. Então o vigia da piscina veio ter comigo e perguntou-me de onde eu era. Disse-lhe que era de Espanha. Ele disse-me que não sabia como as coisas se passavam na Espanha, mas que nos EUA eles não apoiam o suicídio. (Risos)

Estava a gozar ou a falar a sério?

Ele disse-me que se o voltasse a fazer me expulsavam. A questão é que um dos testes para os militares era fazerem duas piscinas sem respirar. Algumas vezes eles tentavam ficar mais tempo e alguns morriam. Mas eram militares que não tinham aprendido as técnicas de mergulho em apneia e que tentavam ir além dos seus limites, por isso morriam. E foi por essa razão que proíbiram isto em todas as piscinas em Nova Iorque. Por isso fui para mar aberto, fazer longas distâncias. E foi então que recuperei o desejo que tinha de atravessar o Estreito de Gibraltar porque me lembro de avistar África quando era criança.

Qual foi a distância que percorreu a nado?

14,2 quilómetros.

Estava sozinha?

A nadar sim. Mas arranjei um patrocinador, porque é caro, e tinha dois barcos comigo. Eles trataram de tudo.

E qual é a relação com a escrita?

Quando decidi atravessar Gibraltar, no dia seguinte comecei o romance. Estava bastante à vontade com os contos. O meu editor nunca me pressionou a tentar o romance. Mas quando tomei a decisão quis começar um romance, “Yoro”. Acho que é uma questão de ritmo. Passava tantas horas a treinar, e durante os treinos pensava nas histórias. Mas era-me impossível pensar em termos de contos ao nadar distâncias tão longas. A história começava a avançar de um ponto a outro, a estender-se. Tinha maior liberdade, mais espaço.

Este livro abarca grandes tragédias mas disse já noutras entrevistas que considera que é na sua essência uma história de amor. Que ideia tem do amor e do papel que tem em salvar as pessoas, dar-lhes significado às coisas horríveis por que passaram?

Tenho uma grande fé nas pessoas, embora isso não seja imediatamente aparente nas coisas que escrevo. Mas queria desenvolver o lado mais positivo que tenho em mim. Não sou uma romântica, sou até bastante realista, mas gosto de ver as pessoas exibirem afecto.

Há esta noção que explora no livro de que as coisas que acontecem não podem ser separadas umas das outras, que quando se provoca sofrimento, mais sofrimento irá eclodir daí, até noutras partes do mundo, como num efeito borboleta. E dá exemplos de actos de pura maldade que aconteceram durante a II Guerra Mundial. Como é que os explica?

Não sei responder. Parece-me que se trata de uma questão antropológica. É evidente que somos capazes do pior e do melhor. É muito complexo. No livro que estou a escrever agora dou por mim a dizer coisas terríveis, mas isto ocorre porque não entendo como algumas coisas podem acontecer.