Marina Perezagua. A luz que sobrevive ao horror

Marina Perezagua. A luz que sobrevive ao horror


Marina Perezagua participou no Festival Correntes D’Escritas num momento bastante curioso, sendo uma das grandes revelações da literatura espanhola, encontra-se ainda na fase de crisálida face ao resto do mundo, tendo já recebido alguns prémios pelo seu primeiro romance, “Yoro”, mas estando ainda a ser preparada a sua entrada nos mercados de língua estrangeira através…


Há um hiato intrigante e que revela um território nebuloso de sonho e ansiedade no modo de construir hoje fenómenos no meio editorial, e este impõe-se entre o momento em que uma revelação literária é feita, quando surgem os primeiros rumores, um ou outro prémio que por uma vez não agracia os de sempre, e o momento em que fica disponível nas livrarias de todo o mundo. A antecedê-lo há todo um percurso, há uns zunzuns nas feiras internacionais, enquanto os agentes e editores especulam sobre qual poderá ser a próxima grande descoberta. Entretanto o livro vai sendo licitado. Mas, mesmo depois de um título estar na carteira das grandes editoras, de ter sido traduzido, escolhida a capa em respeito pelas tendências de cada momento, o seu lançamento é preparado ao pormenor, como se se tratasse de um satélite prestes a estrear a sua órbita em torno da Terra.

Nada pode falhar na sua chegada aos diferentes mercados e idiomas. Porque estamos muito para lá dos dias em que importava acima de tudo que o livro fosse muito bom, que das suas páginas se erguesse um murmúrio encantatório que se transmitisse ao leitor como um vírus, acelerando-lhe a corrente sanguínea. Marina Perezagua (Sevilla, 1978) encontra-se neste estado crepuscular. O seu primeiro romance, Yoro, chegou a Portugal no final do ano passado, antes de chegar a uma série de outros países. É raro os leitores portugueses terem o privilégio de participar numa revelação literária quando esta vai ainda na fase do rumor, quando está a sair do segredo dos deuses, mas foi isso o que aconteceu graças a uma parceria entre a editora Elsinore e o selo espanhol que a descobriu. Enrique Murillo foi o grande responsável, um editor que tomou o sentido contrário à marcha do mundo: foi de grande a pequeno, de príncipe a Quixote, para ter a liberdade toda de que precisava a sua paixão pela literatura. Depois de passar por grandes casas como a Anagrama, Alfaguara, Plaza & Janés ou a Planeta, criou o seu próprio selo, Los Libros del Lince, e tornou-se um dos "maestros" do reino da edição, provando o seu faro para descobrir as vozes que respiram acima dos trejeitos e vagas do mercado.

Murillo publicou dois livros de contos de Perezagua, antes de "Yoro". "Criaturas abisales" (2011) e "Leche" (2013), foram dois momentos de risco, sendo o conto um género mal-amado desde que o mundo dos livros trocou os vícios regionais pelos globais. Se "Leche" ainda teve um sucesso modesto, e o livro foi traduzido para mais alguns países, o certo é que Murillo nunca pediu a Perezagua que tentasse ir além do conto. Sendo praticante de mergulho em apneia, capaz de suster a respiração por períodos até seis minutos, a escritora sentiu necessidade de passar de um esforço vertical, com os contos a buscarem uma solução perfeita e harmoniosa, para algo de fôlego diferente, numa abertura de horizontes, e sem a necessidade de controlar cada pormenor. Isto coincidiu com o momento em que sentiu o desejo de se dedicar ao mergulho livre e em águas abertas. Chegou a percorrer a nado o estreito de Gibraltar em menos de quatro horas, e revelou ao Sol que enquanto se preparava, nas horas de treino, não conseguia pensar em histórias que coubessem no registo do conto. E a sua imaginação sentiu a necessidade de espraiar-se. Foi assim, enquanto nadava, que imaginou a linha narrativa que deu origem ao seu primeiro romance. O romance estende-se entre o final da Segunda Guerra Mundial e vem até aos dias de hoje. 6 de Agosto de 1945, a bomba que demorou 45 segundos, mais três do que o previsto, a explodir a cerca de 600 metros do solo, em Hiroshima, a explosão que matou 200 mil pessoas, e "engravidou" sucessivas gerações de um fantasma, causando uma infinitude de perturbadores desastres íntimos, tantas vezes mudos, até aos dias de hoje. A protagonista de "Yoro" apresenta-se apenas como H, em honra não apenas à cidade devastada, mas a essa letra muda em alguns idiomas, como tantas das vítimas do Little Boy. Era este o nome de código da bomba que o Enola Gay lançou como um castigo dos deuses naquela manhã, mas que se revelou, afinal, outro desses tenebrosos caprichos dos homens. "Little Boy" era também o nome do conto que abria o volume "Leche", e foi a partir dele, da imensa pesquisa que realizou antes de o escrever, que Perezagua definiu o cenário onde queria regressar, para ir mais longe agora, mais fundo, escrevendo um romance perturbador e doloroso e, simultaneamente, tocante, poético, extraordinário nas suas meditações, com uma respiração íntima que está para lá da beleza. Torna-se cúmplice de um balanço das causas e efeitos no mundo, ligando tudo, num amplo teclado em que, se o horror martela as suas teclas, não abafa aquelas que, às vezes até muito próximas, tocam o amor.

Este é um livro que trabalha entre os contornos dos célebres versos de Rilke na primeira das Elegias de Duíno: "o belo apenas é/ o começo do terrível, que só a custo podemos suportar,/ e se tanto o admiramos é porque ele, impassível, desdenha/ destruir-nos. Todo o Anjo é terrível." Um romance onde a ironia, os modelos de frieza, distância e até sarcasmo, tão próprios da literatura desvairada que dá por pós-modernista, não têm lugar. "Yoro", que conta em português com uma excelente tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra, é uma leitura árdua, que bate de frente com a nossa indiferença perante os desastres de um mundo que aprendeu a viver paredes-meias com a indignidade absoluta. Como notava Maria José Obiol, no "El País", esta é uma obra que "ilustra o que significa deserção humanitária".

Ao mesmo tempo, Perezagua mostra-se consciente de que os temas que explora podem tornar-se sufocantes, correndo o risco de certas passagens ferirem demasiado a sensibilidade do leitor. Mas é por isso que a linha que sustenta o romance é uma história de amor, uma ligação consoladora, que se ergue do desespero e acaba por restituir sentido, e fazer pensar na dobra dos versos de Nemésio sobre os de Rilke: "Anjos são os terríveis/ Modos de Deus connosco;/ Nós, as suas possíveis/ Transparências a fosco."

A dor é um nome sem fim neste romance, mas chamá-lo significa despertar para a necessidade do bem, os gestos menores, os detalhes que negligenciamos, e que nestas páginas terríveis assumem uma importância decisiva, satisfazem o desejo de consolação. Perezagua foi uma presença discreta, atenciosa, uma das raras aparições que emprestou à 18.ª edição do Correntes D'Escrita o proveito quanto à fama que usa de festival internacional de literatura. Mas são tantos os escritores, tanta a azáfama, que poucos terão tido a oportunidade de conhecê-la um pouco. "Yoro" será publicado nos EUA no início de 2018, talvez então fique claro como passou entre nós uma das mais espantosas vozes reveladas já neste século.

 


“Após o lançamento, o Enola Gay iniciou a manobra de escape, dando uma volta de 155 graus para Noroeste. A tripulação pôs os óculos escuros enquanto esperava o impacto da onda expansiva, que os alcançou um minuto depois, quando já estavam a nova milhas de distância. Para mim, os dados foram muito menos preciso. Não sabia quanto tempo estivera inconsciente, nem quando saíra da escola. Lembrava-me de que os relógios que ia vendo estavam todos parados na mesma hora: 8h16. Mas não conseguia perceber como encontrara o hospital. Talvez alguém que eu também não recordava me tivesse levado. As semanas seguintes passei amontoada com outros feridos, também são imprecisas. Mais tarde, soube-se que, naqueles primeiros dias, havia apenas um médico para cada três mil vítimas. Embora, na altura, não o soubesse, tinha queimaduras em 70% do corpo.

Alguns dias depois, os meus olhos colaram-se. Não conseguia abri-los. Pensei que tinha ficado cega. Não havia medicamentos, nem remédios para as dores, e estas eram atrozes. O único remédio que me davam era a mudança de posição. De vez em quando, alguém chegava e movia-me. Mas as dores eram tão intensas que, quando me viravam, eu não sabia se me punham de barriga para cima ou para baixo. Todo o corpo me ardia por todo o lado e nada podia aumentar a minha dor; por isso, o peito, o ventre, os joelhos, eram a mesma chapa ardente que as costas, as nádegas, a parte posterior das pernas. Sentia que havia perdido o meu relevo, que, empurradas pela dor, a minha parte da frente e a minha parte de trás se tinham juntado até fazerem de mim uma chapa plana de incandescência uniforme. Soube que começara a recuperar no primeiro dia em que senti a humidade da minha urina. Então, fui capaz de deduzir qual era a minha posição. Se a urina escorria para baixo, eu estava de barriga para cima. Se saía para fazer directamente uma poça, estava de barriga para baixo. Quando me limparam os olhos, consegui abri-los e, quando a dor diminuiu o suficiente para me permitir fazer alguns movimentos, ergui a cabeça e vi-me toda em carne viva, descobrindo que, embora conservasse as formas em todas as minhas extremidades, havia uma massa disforme e irreconhecível que ia do meu baixo-ventre até às virilhas. O inchaço era tão grande que, apesar de, naquele momento, não poder ter a certeza, tudo parecia indicar que a sanha da bomba havia arremetido principalmente contra o meu sexo.”