Piruka. “Comecei a escrever, a rabiscar, quando tinha 14 anos”

Piruka. “Comecei a escrever, a rabiscar, quando tinha 14 anos”


Fenómeno do hiphop nacional, um vídeo seu no Youtube já atingiu 8 milhões de visualizações. Piruka fala sem rodeios sobre o passado e explica o que aprendeu com a filha, que faz dois anos em março.


Miúdo de rua, André Silva chegou a trabalhar 14 horas por dia – “porque a má vida não dura para sempre” – e esteve perto de ficar preso. Mas nem tudo foi mau. Teve a ajuda do avô, senhor de boas famílias de Cascais, que se assumiu como seu tutor. 

Um privilégio que insiste em sublinhar. De resto, a tatuagem do avô, da mãe e da filha decora o seu corpo.
A alcunha ficou-lhe de ter usado uma peruca quando se disfarçava de D’Artagnan lá no bairro. E cometeu a ousadia de ir para a Madorna assim mascarado. Aos 23 anos, André já viu e viveu muito. E decidiu passar tudo a caneta com as rimas certas – hoje escreve quase sempre no telemóvel.

Depois de muito penar em espetáculos à borla, tornou-se um fenómeno do hip hop nacional, com os seus temas explícitos a serem seguidos por milhares e visualizados por milhões.
O tema “Ca Bi Fla Ma Nau”, que Piruka partilha com Mota JR, já vai em mais de oito milhões de visualizações no Youtube.

Como está a correr a divulgação do álbum “AClara”?
Está a correr muito bem. Uma semana depois de o álbum ter saído, o single já ia em quase dois milhões [de visualizações], ou coisa assim parecida. Esgotámos os CDs em dezasseis horas… Não estava à espera de tanto. 

Sentiu que o nascimento da sua filha lhe aclarou as ideias?

Ya, para este projeto sim. Todo o projeto se baseia no mesmo: o foco é a menina. Se não fosse a menina, o meu projeto não iria ser este. Iria ser outra coisa qualquer. Nem ia escrever o que escrevi, porque se baseia na experiência de ter uma filha, no que eu cresci e o que eu aprendi. E que posso ensinar. 

O EP anterior (“Pára e Pensa”, de 2015) era mais pesado.

Sim, mais cru. Mais rua…
Sentiu que tinha de entrar numa outra onda?

Sim. Tanto que teve outra aceitação. Não deixei de ser eu, não é? Até porque este álbum teve uma aceitação de outras partes e até outras idades. Por acaso noto isso.

Nesta altura a divulgação é feita através de redes sociais, dos vídeos no Youtube. Como se ganha dinheiro? 

Os concertos é onde vamos fazendo o dinheiro para viver. É com os concertos, não é com os CDs. O Youtube também dá dinheiro, mas não é o que as pessoas pensam. Hoje em dia não é quase nada. 

Mesmo quando há milhões de visualizações?

Não são os milhões, depende da empresa em que se está. Há empresas que te dão um X, outras que se calhar te dão o dobro. Se tiveres uma editora ganhas mais. Eu não tenho nenhuma editora. Tenho a SWG Music, que não é uma editora.
Vamos lá então falar do “AClara”. Além da Clarinha, temos também uma alusão muito forte à sua mãe…
Sim, a minha cota. A minha velhota…

É aí que encontra também o seu centro? A força para se exprimir?

É a minha paz, tá a ver? Imagine, a minha vida é uma grande correria. Não é só trabalho. Eu não vivo com a minha mãe, mas a casa da minha mãe é o meu lar. Fazem-me sentir bem. É o meu foco. Se a minha escrita se baseia em mim é inevitável escrever sobre a minha filha, que vai agora fazer dois anos. É o que eu estou a viver agora. O álbum está a bater, está a bater muito, mas algumas pessoas dizem que o álbum se baseia tudo no mesmo. Mas se fizesse uma música a dizer que tenho bué dinheiro e que conduzo um Ferrari também iam criticar porque não sou eu.

Onde vai buscar a sua inspiração?

Acho que vou buscar a todo o lado. Se calhar até vou buscar a si…

A mim?! Vamos mas é tratar-nos por tu…

É respeito, é respeito só (risos). Se dissesses alguma coisa que me estalasse aqui, uma palavra, se calhar, podia virar um tema. 

E como se faz esse processo criativo?

Não tenho processo. 

Então estás à noite, fumas o teu charro, e escreves, é isso?

Não é só isso. Neste CD novo tenho dois a capellas, sem instrumental. E ambos foram escritos numa viagem. Nem estava fumado nem nada.

Mas o fumo ajuda-te?

Ajuda a bater. E escrevo muito. Mas tenho uma coisa que é má: dantes escrevia no papel e agora escrevo no telemóvel. Mas não devo ser o único, há muitos assim. Se me bate alguma coisa, abro o telefone e escrevo. 

“Bandido desde puto, meu tropa tu queres o quê?
Minha vida era loucura o meu futuro era a cana,
Mas tirei o pé da lama e mantenho a minha fé.
Agarrei me ao RAP com unhas e dentes,
Fiz o que tinha a fazer e não falhei o compromisso”. (Sirenes)

Há uma geração, ou se calhar várias, que estão a viver muito o hip hop e, em particular, as tuas músicas. O que achas que está na base dessa adesão?

Eu falo o que sinto. Se calhar até tive uma vida fácil até uma certa idade.

Com uns privilégios até…

Sim, tive alguns privilégios.

Nomeadamente da parte do teu avô materno…

Sim, tenho o meu avô tatuado. Está aqui a dizer… [mostra o braço]. O meu avô é a minha estrela. Foi o pai que eu não tinha. Hoje em dia tenho um pai presente porque tenho também a minha vida feita. Mas a minha filha é que precisa agora de um pai, não sou eu.

Como está o teu pai? Também passou um mau bocado…

Sim. Hoje em dia está mais presente. Está mais cota, mais orientado na vida. 

Como é que ele encara o teu percurso?

É um cota orgulhoso, não é? Sente-se orgulhoso.

Mesmo sabendo que ele está também ali retratado nas tuas letras?

Tenho uma música que é o ‘Está na Hora’ que é mesmo para ele. Aquilo é tudo verdade. Pela minha saúde. Ele ouviu aquela música há dois ou três anos e deixou de se drogar. Não fui eu que lhe mostrei a música, porque não tive coragem e porque digo ali muita coisa que é feia de um filho dizer a um pai. Apesar de lhe ter dito na cara muita vez. Mas tive o respeito de não pôr a cara dele ali. É um ator e o miúdo é lá do bairro, que é o Chucky. Fiz aquilo para ser real, porque é a minha vida. Não consigo fazer uma música que não tem nada para dizer. Por exemplo, nos Estados Unidos muitos fazem aquelas músicas só para bater. Parecem códigos que entram nos ouvidos. É feito para bater e bate milhões.
Mas quando ouvimos o Piruka, percebemos que não é o registo de LA. É a Madorna…
Sim, a Madorna. Também está escrito aqui no meu braço.

É só tatuagens… (risos)

Também tenho aqui o Quatro Cantos, tenho a cara da minha filha. O meu Tupac… 

Tupac?

Ya, é o Rei. Isto apesar de não ouvir rap americano. Tatuei pelo que ele simboliza para o hip hop, não pelo que canta. 

Também não te dás muito bem com o inglês, não é?

Sim, não falo inglês. Eu percebo inglês, não sou nenhum burro nem analfabeto. Mas tenho uma ideologia diferente. Se eu vou a França tenho de falar francês, eles não falam inglês. E porque é que quem vem cá não fala português?

Quando olhas para trás, quando eras um puto do bairro…

… mas eu ainda sou um puto, meu. 

Mas o que sentes agora?

Sinto-me orgulhoso de mim próprio. Porque acreditei sempre em mim. Mesmo quando os outros diziam que não. Passei mal. Não estou a dizer que sou uma grande vedeta por causa disso, mas muitos na minha situação tinham largado o rap. Tudo me levava a fazer isso, porque a minha vida estava uma porcaria. Estava à espera de uma filha. É complicado. E o rap na altura não alimentava. Eu trabalhava 14 horas por dia – porque a má vida também não dura para sempre – e tive de fazer uma escolha, porque não tenho cara para ir de cana, para ir preso. Não tenho. Vi-me num beco que era, ou vou trabalhar ou não vou ficar aqui muito tempo. Eu apanhei cinco anos de pena suspensa. 

Porquê?

Ganza. Não roubei, porque isso não se incute na minha moral. Não obrigava ninguém a comprar nada. É um crime, mas há crimes bem piores. Por isso fiquei com cinco anos de pena suspensa. Eles já me conheciam e à mínima coisinha estavam no meu pé.

Por isso foste trabalhar.

Então fui trabalhar. Comecei a trabalhar 14 horas por dia e ganhava 500 euros. Vivia sozinho, comecei a viver sozinho com 17 anos. Juntei-me com uma miúda. Mas depois ele estava grávida com uma grande barriga e teve de deixar de trabalhar. Não foi fácil. Então trabalhava 14 horas, saía à 1 da manhã, metia-me no carro e ia cantar de borla para tudo o que era lado. Davam-me bar aberto e eu nem álcool bebo. Ia lá porque tinha de ser. Cheguei a cantar em bares do tamanho desta sala. Hoje em dia é impensável. As pessoas quando conseguem conquistar algo não se podem esquecer do que está para trás. Eu não mudo, meu. 

Continuas a morar no Cacém?

Não. Eu vivia na Madorna, depois fui para o Cacém. Tenho lá uma casa. É minha, mas a minha avó é que comprou. Mas não é um sitio onde me veja ir lá viver. Como tenho a minha filha numa creche na linha de Cascais, tenho de andar por lá. Se não estava a viver aqui em Lisboa, certamente. A minha vida está aqui em Lisboa e passa também muito pelo escritório onde nos encontramos. 

Que idade tem já a tua filha?

Vai fazer agora dois anos em março. É uma pirata. 

Inspiras-te quando estás com ela?
Como é que vou explicar? Parecendo que não, a miúda até me ensina. E acho que o que me ensinou mais foi a ter paciência. Eu era uma pessoa que não tinha muita paciência. Quando um bebé lhe dá o flash e começa a berrar…

Bem sei o que é isso…

Então não é? Temos de ter muita paciência, muita calma. Mas não há melhor do que isso. É errado uma pessoa dizer que só luta pelos filhos. Nós lutamos por nós próprios, senão estávamos sempre uns farrapos e eles é que estavam bem. Mas lutamos também por quem gostamos. Então eu luto pela Clara, luto pela minha mãe, luto por mim para lhes conseguir fazer bem. Quando fazemos as coisas só a pensar nos outros não vamos a lado nenhum. 

Como era antes?

Quem não me conhecia bem, gozava comigo. Eram só chicos-espertos. Hoje em dia, veem-me a passar de carro e têm outro respeito. Mas há dois anos, se fosse preciso, cuspiam-me em cima. Por isso é que eu digo aos miúdos, “se sentes a cena continua porque depois vêm-te bater palmas”. Mas tens de fazer por isso. Eu comecei a escrever, a rabiscar tinha catorze anos.

Há também um lado negro nas tuas letras, as ganzas e tudo isso… Sentes alguma responsabilidade para com aqueles que te ouvem, nomeadamente os mais novos?

Vou ser honesto e abrir o jogo: eu não acho as ganzas o lado negro. O lado negro é a cocaína, o lado negro são os papéis, que são o ácido. O lado negro é toda essa porcaria. Eu fumo ganzas, mas nunca bebi álcool na minha vida, nunca dei um risco de coca. Nunca nada. Mas já vi tudo à minha frente.
Já viste pessoas a estragarem-se à tua frente?

Vi. Mas as pessoas fazem as coisas porque querem. É mesmo assim. É da cabeça de cada um. Quem quer fuma, mas não acho que seja um lado negro. Acho um lado feio, mas é tão feio como o álcool. Só que o álcool é legal e a ganza não é. Não vês ninguém a morrer por ganza, mas vez muita gente a morrer por excesso de álcool. 

É mais a teoria de que umas coisas levam às outras.

Mas o álcool também leva a tudo. Leva a drunfos, leva a depressões. É vermos as coisas como elas são. Há países em que é proibido beber na rua. Aí acho correto. Se é proibido fumar porque não é proibido beber, se é uma substância que altera? Porque altera. E altera-te mais do que a ganza. Porque eu fumo duas ganzas e conduzo daqui para o Porto. Na boa. Agora tu bebes cinco shots e já não conduzes tranquilo. A mim a ganza dá-me criatividade. Eu ouço um beat, vêm-me os flows à cabeça e começo a escrever. Também acho que quando é muito forçado não é bom.

O que consideras importante na tua vida enquanto artista?

As pessoas que me ouvem, as pessoas que trabalham comigo. Enquanto artista, não enquanto pessoa. Porque se não fossem as pessoas que me ouvem não poderia ter outras a trabalhar comigo. Recebo milhões de mensagens. Podem pensar que é mentira porque estamos em Portugal, mas eu abro aqui e vocês bloqueiam, estás a ver?

Respondes sempre?

Respondo a quem posso. A 10-15 de cada vez, mais é complicado. Mas agradeço do fundo do coração. Tenho 23 anos, meu. Sou um miúdo. Parecendo que não, sou o mais novo em Portugal a fazer o que eu fiz. Se fosse na altura em que o Sam (the Kid) começou era outra coisa. Se calhar não precisava de tanto para chegar onde chegou. É verdade, hoje não precisamos de batalhar tanto para chegar onde chegámos.

A cena hiphop tuga é fortíssima. De certa forma, nota-se que existe uma certa camaradagem entre alguns de vocês. Confirmas?

Em Lisboa até parece que há os linha C, de Cascais, ou linha S, linha de Sintra. Em Lisboa somos bué separados. Parece que as pessoas têm medo do sucesso dos outros. Lá no Norte eles não são assim.

Aqui há rivalidade?

Não sou rival de ninguém. Vamos ser honestos: é claro que vais querer ser melhor. Mas assim parece que ninguém quer ficar contente com o sucesso uns dos outros.
Gravaste com o Mota o “Ca Blu Fla Ma Nau” que está com oito milhões de visualizações.

Ya. Esse puto é bué da bom. Isso é que está discriminado – o rap crioulo, a bandidagem. Mas é o que eu ouço. Ouço rap crioulo e rap português. Ouço também rap brasileiro, ouço agora também um rap marado, muito pesado (risos). Rap inglês, pop americano, nada.
Houve uma altura em que estavas também próximo do Dillaz. 

Claro, ele é meu irmão. Mas lá está, eu já disse isto uma vez: ele é reservado, não fala, mas é normal. Isto é uma profissão; ele está em estúdio, eu estou em estúdio, é normal que não me dê com ele como me dava. Até porque tenho uma filha, tenho as pessoas que trabalham comigo que estão mais presentes. O mesmo acontece com ele. Não lido com ele todos os dias, mas é meu amigo. E ele pode considerar-me amigo dele, porque sou. Também já disse que gostei de ver o sucesso dele. Porque o sucesso dele fez-me acreditar que eu poderia ter sucesso também.

“Eu quero é ouvir Piruka na boca do povo”, como diz o tema “Ca Blu Fla Ma Nau]…

É isso, man. Disseram-me também que sou o primeiro ou segundo rapper português com mais subscritores. Achas que sonhava isso, com 23 anos? Dou graças a Deus. Uma coisa é sonhar e lutar por isso, outra é poder ver isso. Mas eu não conquistei nada. E hoje estás em alta, mas há bué de marés. Temos de ter os pés assentes na realidade. Não é a fama, porque a fama é nos Estados Unidos ou o Ronaldo. 

És reconhecido na rua?

Todos os dias tiro 50 ou 60 fotografias, se for preciso. Mas não é que não possa andar na rua. Em três meses eu e o Mota tivemos 6 milhões [de visualizações no Youtube com o tema Ca Bu Fla Ma Nau], com rap cru português e crioulo. Ninguém fez isso, man. Diz-me quem bateu já esses números – ninguém. Mas temos sido descriminados, porque ninguém nos chamou para a televisão. Mas vês hip hop a bater nas novelas. É mais calminho, mas é hip hop.

Nunca foste à televisão?

Fui cantar o meu rap às 4 da tarde na SIC, com o João Baião. Fui lá com o [rapper] Savage/Pascoal, que também aparece no meu álbum. Fui eu do início ao fim.

Fizeste playback?

Playback não! Não admitia isso, não papava isso. Não faço tudo para aparecer. Não faço isso, mano. Porque tu cais… A minha aprendizagem fez-me saber lidar com todos os tubarões. A mim para me enganarem têm de pedalar muito. Porquê? Porque vivi a minha vida inteira ao pé de piranhas que queria eram comer-me a torto e a direito.
Isso foi também uma aprendizagem importante?

Foi o que me fez ser quem sou. Mas dei muita queda. Há muitos homens com a idade do meu pai que não viveram um terço do que eu vivi. E não passaram um terço do que eu passei e não aprenderam um terço do que eu aprendi. Mas eu desenrasco-me. Não sei cozinhar, mas vivi um ano sozinho quando me separei da mãe da minha filha. Hoje sei-me mexer, à pala da vida que tive, e até ajudo a minha mãe.

Como é que a tua mãe olha para ti?

A minha mãe é a minha rainha. Quando eu tive esses cinco anos de pena suspensa a minha mãe foi a tribunal comigo e disseram-lhe que tinha uma semana para dar 15 mil euros ao tribunal para eu não ir de cana. Ela arranjou, man! Esteve três anos a trabalhar de borla. É dar valor! Felizmente teve patrões que lhe emprestaram o guito. Mas três anos a trabalhar de borla? É bué.

Para finalizar: como estamos em termos de concertos?

Felizmente estamos bem. Vamos agora para Monte Gordo, depois Viseu. Dia 24 de fevereiro vamos estar no Hard Club, no Porto. Vai ser a nossa festa. Apareçam.