As pessoas incomodam-se com a dor. Não me refiro à sua dor – isso é normal –, mas à dor dos outros. A dor dos outros chateia, atrapalha, dá mau agoiro. A dor dos outros é uma chatice e deve ser por isso que fugimos dela: não aguentamos ver alguém chorar. É como se a exposição da fragilidade deles mostrasse também a nossa, como se as lágrimas que vemos cair fossem descer na nossa própria cara. E nós só queremos que se calem. Que parem com a choradeira e com a tristeza, que se riam rapidamente, que digam “estava a brincar, estou ótimo, vês?”, que nos peçam desculpa por nos terem assustado com o choro que incomoda!
Não queremos ver ninguém triste – porque não sabemos o que fazer com aquilo. Não sabemos quais as palavras a utilizar, se abraçamos ou deixamos estar; não sabemos se é para dizer que está ali um bocadinho de ranho, misturado com a água das lágrimas, tão próximo do lábio; não sabemos se é para começar a bater palmas enquanto cantamos uma música alegre para animar de repente!
“O que é que eu faço? O que é que eu digo?”
Então, nessa aflição que nos invade, começamos por debitar ordens, por apressar conselhos, por impingir clichês, por abalar num “chiu, chiu, chiu, já passa, já passa, não fiques assim”, até que acabamos por implorar (por nós), diretamente e sem pudores: “Não chores, não chores que EU não suporto ver-te assim!”
Pronto, está dito e admitido. Não queremos ver ninguém sofrer porque isso magoa-nos. “Porque a tristeza entristece e não me dá jeito nenhum deprimir agora, que até vou jantar fora mais logo”… E ao vermos o outro soluçar mais devagar, mais parado, mais calmo, talvez obedecendo à nossa súplica, achamo-nos mestres do controlo (fechámos uma torneira, isso deve significar qualquer coisa) e dizemos àquele que agora chora menos porque o mandámos calar:
“Não podes reagir assim! Não podes ser dramático nem negativo! Tens de ser positivo e aceitar esta fase! Não podes reagir assim, desta forma catastrófica! Tens de encarar o caminho com coragem porque para a frente é que se anda!” Embalados no entusiasmo de quem anima, do líder que cativa, de quem dá as ordens à emoção, percebemos que as nossas palavras estão a funcionar porque já ninguém chora ali! “Uau, uau, uau”, pensamos, orgulhosos do nosso papel, orgulhosos por termos sido NÓS a acabar com aquilo!
O outro engole o choro e as lágrimas, sim, vira o rosto para o lado e faz um esforço desumano para que elas não se revoltem e saiam. O outro engole tudo aquilo que iria desabafar e todas as mágoas que quase foram expelidas, que são postas em fila e mandadas entrar novamente e voltar às posições iniciais – bem dentro do coração. O outro para de chorar, para de mostrar a sua vulnerabilidade e volta a fazer sentido e a colocar as costas muito direitinhas, hirto, fechado, calado – porque não o deixaram chorar.
Nós, palermas, achamos que acabámos com a crise. Que agora ficou tudo bem. Que a tristeza, puf, evaporou-se, foi embora, escapou. Somos uns heróis e medalhamo-nos por termos resolvido o problema. O choro acabou. Nós ficámos melhor. O choro acabou, a amizade continuou e “vamos lá beber um copo que agora que não atrapalhas os meus planos, que não incomodas com a tua tristeza, apetece mesmo estar contigo!”.
Mas depois aquele que não chorou não abre a porta ao nosso convite. Não sai de casa nem quer ver ninguém (quem é que o compreende, afinal?), não atende os telefonemas, não come nem se veste. Não chora – é verdade –, mas porque não sente mais nada. Está vazio porque quando esteve cheio, a transbordar, a explodir, mandaram-no parar e ele parou. Aliás, secou. O que ali estava não saiu e ali ficou ao ponto de se tornar parte do corpo, do sangue, dos órgãos daquele que não chorou.
Achamos estranho tudo aquilo. Não gostamos de choro, mas também não nos agrada a apatia. Não gostamos de nenhum daqueles estados. São ambos incomodativos. Mas nós somos amigos! Somos os verdadeiros amigos! Por isso, vamos lá a casa, exigimos que nos abra a porta porque temos mais um conselho prático para acabar com aquele estado zombie tão chato, tão sem vida! Temos a solução, temos a solução!
Olhamos para o nosso amigo, cujo ar não mostra mais nada. Exausto, comido, cansado. Olhamos para ele com uma falsa compaixão, porque só queremos que ele se anime para nos animarmos a nós também. Olhamos para ele e imploramos:
“Tens de reagir! Tu tens de reagir!”
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