Manuel estava atrás de um muro, à espreita; num bolso, a máquina fotográfica e o bloco de notas, no outro, a cédula de jornalista. Era inverno, ventava e chovia na aldeia de Lavadouros da Ribeira, mas ele, estoico e profissional, sujeitava-se à inclemência dos elementos, esperando que Antónia aparecesse à janela ou recebesse visitas, ou ao menos que a chaminé deitasse fumo ou a nespereira do quintal vibrasse sob o vento. Esperava qualquer coisa que pudesse ser fotografada e servisse para ilustrar a novela noticiosa da mulher que colocara vidro moído na comida do marido. Era esse o fado de Antónia, uma anónima dona de casa que saltara para as primeiras páginas e para o tempo nobre dos noticiários quando se tornou suspeita de homicídio e foi colocada em prisão domiciliária. A aldeia tornou-se o centro do mundo, Antónia foi catapultada para debaixo dos holofotes, e Manuel e outros como ele acamparam ali. Essa tarde correu, a luz escoou-se e nada ocorreu que pudesse ser fotografado, nem mesmo um invisível pio de pardal. Manuel, tomado pelo pânico da página em branco, rumou ao café da terra, onde encontrou um vizinho, o qual, escravo da tirania da notoriedade efémera e vulgar, debitou umas considerações sobre as suspeitas que sempre alimentara sobre a megera. E assim ganhou uns segundos de fama (as coisas hoje já não se medem pelos 15 minutos de antigamente). Estava ganho o dia para o enregelado Manuel mas, à saída do café, a sorte brindou-o, como só brinda os esforçados ou os audazes (e ele era um pouco de ambos). Ia a passar o desgraçado filho de Antónia e do finado marido, e o Manuel logo o encurralou com as perguntas da praxe: Estava a sofrer? Acreditava na culpa da mãe? Era extremoso o saudoso pai? O filho primeiro esquivou-se, depois balbuciou uns sins e uns nãos mal percetíveis, mas isso bastou para o triunfante Manuel.
No dia seguinte, a coisa saiu com destaque, parangonas sobre a megera e o sofrimento do filho e fotos deste e do vizinho. Um colega de redação do Manuel, mais velho e apegado a ideias antigas, perguntou-lhe se não achava aquilo um exagero. Manuel, seguro e lesto, respondeu-lhe que o interesse público o exigia, que era seu indeclinável dever proceder assim; e que não o maçasse, pois nesse dia tinha muito que fazer, já que ainda havia outros vizinhos para ouvir e a Antónia até podia assomar à janela. O colega pensou dizer-lhe que ele estava a confundir interesse público com interesse do público, e que aquele “do”, aquela contração entre a preposição “de” e o pronome “o”, fazia toda a diferença, a diferença que separa a notícia do entretenimento, a informação do espetáculo. Mas o Manuel já saía apressado, o colega deu de ombros e nada disse. E quem era ele, afinal, para desafiar o interesse do público e os bons números das tiragens? A saga da Antónia talvez fosse mesmo um assunto importante e sério. E o “do” era só um detalhe, e é sabido que a vida não está para essas coisas.
Escreve à sexta-feira