Mesmo que a realidade nos belisque insistentemente, Donald Trump na Casa Branca está tão dentro do espírito de uma dessas espalhafatosas comédias a que Hollywood nos habituou que é difícil instalar-se verdadeiramente o horror dessa hipótese, desde logo pelo gosto a pipocas que nos vem de imediato à boca. Podíamos imaginar o argumento de uma fita superficial com Adam Sandler no papel do odioso bimbo que, depois de embarcar numa série de políticas impulsivas, se dá conta dos seus erros, e procura reparar as injustiças cometidas, revelando ter um bom coração. Só que isto não é um filme, não são duas horas numa sala de cinema para testarmos as águas e regressarmos depois incólumes ao mundo real. E o facto de nos custar tanto a acreditar que Trump tenha sido eleito “o líder do mundo livre” continua a ser o seu grande trunfo.
Nos últimos anos, e depois de o Congresso norte-americano ter batido no fundo, com os mais deploráveis níveis de popularidade em décadas, o Partido Democrata andou a brincar ao bom senso, e desafiou todos aqueles que vivem nos estados entre as aspas das duas costas, a engolirem Hillary Clinton ou darem o voto ao equivalente de um Frankenstein construído a partir dos mais vergonhosos pedaços da cultura das celebridades e montado no laboratório do entretenimento.
Se uma maioria concentrada – que tantas vezes pensa só para si e repudia quem não faz um esforço para acompanhar – percebeu que não havia verdadeiramente uma escolha, e que eleger Trump seria um acto de desespero e loucura, uma minoria negligenciada mas numerosa e bem distribuída pelos outros Estados já não tinha paciência para aturar mais quatro anos a ouvir gente polida a trocar galhardetes numa linguagem digna de uma ficção demasiado complicada para poder acompanhá-la. A política havia-se tornado um espectáculo demasiado frio e distante. E para uma grande parte dos norte-americanos as perspectivas em relação à sua qualidade de vida pareciam cada vez mais desanimadoras.
Trump tornou-se uma tentação apenas por estar fora dos planos de toda a gente que faz planos. Mesmo Hollywood só despertou tarde demais. Com uma premissa tão disparatada, o mundo do espectáculo subestimou-se. Era muito rebuscada a hipótese de que, numa eleição em que estava claro que a opção era entre o menor de dois males, uma parte significativa do eleitorado pudesse simplesmente atirar o tabuleiro ao ar. Trump tornou-se o candidato de um imenso mal-estar. As suas palavras, aquilo que ele representava, e que nunca esteve muito claro, não era para ser levado a sério. Simplesmente ele falava a mesma língua, revelou-se tão patético como se sentiam aquelas pessoas. Hillary pôs o dedo e infectou a ferida a certa altura, pelo modo como mostrou o seu desprezo por todos os que se tinham abandonado a um estado de ânimo desolador, e baptizou-os como os “deploráveis”. Talvez tenha sido nesse momento que perdeu a eleição.
Com toda a sua frieza e cálculo político, a eterna candidata não viu que o país que elegera o seu marido e depois Barack Obama já não era o mesmo. O capital de esperança estava no fio. O erro que lhe foi fatal foi o ter desistido de todos aqueles que tinham já tido a sua conta, e ao seu jeito gritavam “I’m as mad as hell, and I’m not going to take this anymore!” Todos aqueles para quem o cantar de galo do mundo tecnológico só lhes dizia que a cada novo dia estavam a ficar para trás, aqueles que se sentiam humilhados e até alvos de bullying por parte das fabulosas mentes progressistas e liberais com as lustrosas e refinadas noções sociais. Afinal, ouviam tanto falar dos direitos do multiculturalismo, dos direitos da comunidade LGBT, e uma série de outros fenómenos que batiam de frente contra os seus preconceitos, mas para eles, desterrados dentro da sua própria cultura, a darem o duro e a prosseguirem com as suas vidas num século passado, não havia heróis, não havia quem lutasse por eles. Esse outro país esquecido, ignorado pelas margens ‘chiques’ de Nova Iorque e Los Angeles, sentia-se a ilustração daquela injustiça tão bem descrita por Bertolt Brecht: “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.”
Eles não iam engolir outro sapo. Desta vez seriam eles a impor o sapo que a elite iria ter de engolir. O céu tinha caído. As estrelas que idolatravam traíam os seus valores conservadores mal alcançavam projecção. Só tinham as origens humildes mas depois imitavam todos os tiques da classe bem pensante e faziam esta gente sentir-se pior consigo mesma. Por terem ficado para trás, e por não terem a capacidade de respeitar esse admirável mundo que escolhia passar-lhes ao lado. O ressentimento crescia paralelo à idolatria. E então chegou Trump, o candidato que não se cinge a nenhum guião, muito menos ao do políticamente correcto. Antes diz o que lhe vem à cabeça, alguém que odeia tudo um pouco, alguém que amplifica esse ressentimento.
Quando a realidade começou finalmente a vencer a descrença, estávamos já todos cobertos de nódoas negras de tantos beliscões em poucas semanas. A princípio não entendíamos, mas depois o desenho começou a ficar terrivelmente claro. À frente dos EUA não está hoje uma figura vinda da política ou, sequer, e como ele gosta de se afirmar, um vencedor do mundo dos negócios. Nada disso. Trump é uma celebridade, e é a mais grotesca que produziu esta cultura escapista e autoindulgente, que busca compensar a desilusão tornando o público meros adeptos torcendo a partir da bancada enquanto no campo se desenrola a verdadeira vida, a das celebridades.
Os centros de influência política já não ocupam verdadeiramente o terreno onde se trava actualmente a guerra que cativa a atenção das pessoas. É preciso não esquecer que a verdadeira plataforma que lançou a campanha de Trump começou muito antes da corrida à Casa Branca, mais de uma década antes, quando começou o seu reinado nas audiências televisivas, como o todo-poderoso patrão que despedia semana após semana as pessoas que não estavam à altura de fazer parte do seu império de sucesso. Sublinhe-se ainda como, em edições mais tardias de “The Apprentice”, Trump já não julgava apenas pessoas comuns mas na versão do programa para celebridades passou a ditar as leis do espectáculo. E foram muitas as que se lhe submeteram, ajudando a cultivar a imagem de um fazedor de reis.
Trump detinha há muito o poder que realmente fazia o eleitorado sonhar. E mesmo Barack e Michelle Obama levaram mais longe do que quaisquer outros ocupantes da Casa Branca o flirt com o mundo e as lógicas do reino das celebridades. A diferença é que o magnata simplesmente não tinha vergonha, para ele não havia limites. Ele tem mais experiência que ninguém na distorção dos valores que o público em busca de emoções e escândalo aprecia. Ele limitou-se a dar o passo que era há muito óbvio, o de confundir a figura do público televisivo e do Twitter e de toda a rede mediática com o eleitorado. Trump nunca se coibiu de comentar na sua popular conta de Twitter as notícias que realmente cativavam a atenção do público, fosse quanto à nova família real norte-americana, as Kardashian, fosse na trama de amor e traição entre os protagonistas de sagas de sucesso como a dos vampiros “Twilight”, dedicando uma série de tweets ao par Kristen Stewart e Robert Pattinson, fosse em relação às questões do plano político que uma vez por outra aqueciam mais os ânimos e, nesse campeonato, soube usar como ninguém a política do medo, e amplificar as preocupações quanto ao suposto ‘choque de civilizações’ e ao terrorismo.
Não deve espantar ninguém, por isso, que hoje a verdadeira oposição a Trump não seja a cúpula do Partido Democrata mas o céu que conseguiu pôr de joelhos perante si enquanto líder de audiências. É ao mundo das celebridades e, particularmente, à realeza de Hollywood que cabe reerguer o céu a que emprestam o seu brilho. Os próximos quatro anos serão uma guerra de atrito que promete chamar às armas a sociedade civil norte-americana. E os grandes discursos não serão feitos por responsáveis políticos mas pelos pares de Trump. Por isso é que ele se sentiu tão atacado por Meryl Streep e pelo seu discurso na gala dos Globos de Ouro, e por isso é que, na actual configuração política, a noite dos Óscares, no próximo dia 26, terá mais impacto do que a própria cerimónia da tomada de posse ou um congresso do Partido Democrata. Como notou Anne Helen Petersen, jornalista de cultura do BuzzFeed, a chave para compreender o que se vai passar nos próximos tempos é não esquecer que Trump continua a lutar pelas audiências. Nunca o populismo foi tão concreto. E é justamente neste campeonato que uma oposição consistente de Hollywood e do restante ‘star system’ pode revelar-se de enorme eficácia. “Encarar Trump como um político é acreditar que os tradicionais meios de escrutínio do jornalismo serão suficientes para erodir a sua imagem junto dos seus apoiantes”, refere Petersen. “Encará-lo como uma celebridade é compreender que as instituições mais danosas para a sua própria frágil noção de imagem – o Saturday Night Live, os tablóides, os programas na televisão por cabo, o Twitter, as fotos dos paparazzi do cabelo dele – são os pontos em que se sente realmente vulnerável.”
Para Trump o poder que ganhou ao sentar-se no trono da Sala Oval não lhe dirá muito se, no dia-a-dia, as coisas se tornarem aborrecidas, se não tiver alguma manobra com a qual consiga dirigir a atenção do público de forma a evitar que as atenções se concentrem na sua óbvia incompetência, tendo à perna o perigo da imensa onda de ódio que ergueu se abater sobre ele, tornando-se o alvo de toda a classe que um dia teve aos seus pés, e passando a ser motivo de constante chacota.
Foram evidentes os sinais de frustração pelo facto de, no dia da tomada de posse, o apoio popular ter sido bastante menor do que aquele que teve Obama em 2009, e não contente, Trump ainda se expôs ao ridículo de contestar as imagens divulgadas pela comunicação social, mandando ampliar fotografias para expôr outros ângulos e, ao mesmo tempo, abrir aos jornalistas uma porta para a sua mente perturbada, na tentativa de cortar as unhas aos factos para que uma vez mais a realidade coubesse na pobre ficção que lhe convém.
Contudo, o pior não foi a falta de altura do seu bolo, mas a recusa da cereja a coroá-lo. Porque nos dias que antecederam a cerimónia, houve a novela vexante em que a sua equipa recebeu tampas de todas as estrelas de primeira linha, e depois até das de segunda, terceira, quarta. Hollywood sabe ser uma grande cabra, e Trump sentiu-o como ninguém na hora em que mais precisava de passar uma imagem de força. O que devia ter sido um espectáculo com grandes actuações, acabou por ser um concerto que contou apenas com o refugo musical do país, e isto depois de Melania ter passado também pela humilhação de ver, um após outro, todos os estilistas a negarem-se a vesti-la. A partir de certa altura ficou claro como se orquestrou uma campanha de toda a indústria do entretenimento para limpar as mãos e a imagem de qualquer responsabilidade que possa ter tido na eleição de Trump. E tudo foi tão denunciado que logo se percebeu que ao ficar ao lado do novo presidente qualquer artista com ambições de uma carreira de sucesso podia ficar na lista negra. Hollywood e suas adjacências parecem ter retirado uma página do manual do Macartismo, só que desta vez do lado certo da História.
Se o triunfo de Trump passa por ter sabido aproveitar os ventos que levaram a que a estratégia da afirmação política cedesse nas suas convenções e se travestisse de modo a estar mais perto daquilo que interessa “ao país real”, então está na hora de perceber que a força deste presidente será também a sua principal fraqueza, uma vez que ele simplesmente não é capaz de ignorar as críticas que lhe são feitas. Basta referir que este é o homem que, duas semanas antes de assumir a presidência, teve de transformar um discurso num evento público numa sessão de gabarolice, notando que as audiências do “The New Celebrity Apprentice” não estão famosas, tendo o canal ido buscar Arnold Schwarzenegger para o subtituir. Muito contente consigo mesmo, fez a auto-homenagem, dizendo que a missão de substituí-lo seria impossível. Ofereceu assim a deixa ao lendário protagonista de filmes de acção e ex-governador do Estado da Califórnia para lhe acertar um murro nos dentes, ao dizer que talvez o melhor para todos fosse trocarem de lugar. Assim, Schwarzenegger poderia governar o país e devolver a paz a todos os que neste momento estão inseguros e até assustados quanto ao futuro, ao passo que Trump poderia devolver o canal aos picos de audiências.
Na altura em que a sua campanha conseguiu trazer alguma vida a umas presidenciais que pareciam ter todas as peças alinhadas para se tornarem uma vez mais uma querela entre as grandes dinastias que têm controlado o jogo de cadeiras em Washington, e sobretudo quando Trump começou a arrumar um a um os candidatos republicanos nas primárias, a sua campanha chegou a ser saudada por algumas celebridades que se permitiram juntar-se aos brados contra o sistema. Mas hoje mesmo Clint Eastwood – que a certa altura estava mais preocupado com o facto de o país estar entregue a um bando de “mariquinhas” –, e até um amigo de longa data como Tom Brady, mega-estrela do futebol americano, se recusaram a apoiá-lo publicamente.
O vencedor está sozinho e desamparado numa altura em que estar ao seu lado equivale a ser colado a um rol de noções preconceituosas que estão constantemente a ser actualizadas. Porque se a imprevisibilidade até dado momento jogou a seu favor, agora tudo se inverteu. Ninguém pode apoiar uma figura que, até segundo opiniões médicas, poderá ter dificuldade em jogar com as cartas todas do baralho. Foi esse o alerta que uma série de psicólogos, psiquiatras e psicoterapeutas espalhados pelo mundo deixaram recentemente, apontando para a possibilidade de o novo presidente sofrer de um transtorno de personalidade narcisista.
Num momento em que há até carreiras que estão a renascer na base da grande festa de escárnio e na galhofa que tem Trump como vítima, talvez um dos indicadores de que o presidente é tão mau, ou pior, do que aparenta ser, é o facto de a sua eleição ter animado tanto Vladimir Putin, um senhor que sabe muito bem o que é mau para a América.
Mesmo que Trump consiga agora chamar a si todos os grupos que se sentem marginais ou ignorados, as franjas descontentes, os supremacistas brancos e os fanáticos religiosos unidos pelo ódio aos ideais progressistas, quanto mais tentar alargar a sua base de apoio e abraçar os populismos, mais a mensagem do presidente se tornará um caldo impossível de sustentar. Este será um líder que tanto pode ensaiar um golpe, incapacitando as defesas democráticas do país e caminhar no sentido do totalitarismo, alentando os movimentos extremistas que estão a conquistar posições um pouco por todo o mundo ocidental, como pode revelar-se útil para acordar a sociedade para os seus excessos, para a forma como o mundo das celebridades tem sido usado como elemento narcotizante pela sociedade de consumo, para oferecer um rosto ao capitalismo, torná-lo menos frio e distante, fazendo de cada cidadão um fantasista do consumo. Gerações que sonham enriquecer custe o que custar, e viver com o tipo de luxos que se tornam ofensivos para quem tem menos, e isto sem respeitar o próximo ou o seguinte. E é neste ponto que cabe a Hollywood cortar o caminho a Trump e ao mesmo tempo fazer uma auto-crítica.