Pacheco Pereira: “Se fosse cidadão dos EUA tinha votado Bernie Sanders” [vídeo]

Pacheco Pereira: “Se fosse cidadão dos EUA tinha votado Bernie Sanders” [vídeo]


O arquivo de Pacheco Pereira é uma permanente luta contra a erosão do tempo. Uma derrota anunciada tentando manter uma memória da história.


É um imenso arquivo distribuído por mais de sete casas. São mais de cinco quilómetros de documentos e objetos. Nas casas da Marmeleira há objetos improváveis e diversos, desde retratos dos heróis do trabalho soviéticos, uma estátua de um Guterres africano de tanga, mais de um milhão de selos, até aos arquivos de Sá Carneiro. Todas as semanas chegam metros de arquivo para tratar por dezenas de voluntários. É uma corrida contra o tempo, como se quisesse impedir a desaparição de um passado, uma vida e uma memória no meio dos tempos difíceis que vêm.

De onde lhe veio esta paixão pelos arquivos, quase de colecionista?

Penso que tem a ver com razões familiares: o meu bisavô, avô e pai eram bibliófilos e, portanto, tinham uma grande biblioteca. Comecei a trabalhar nessa biblioteca desde muito cedo. A minha primeira tarefa era ir buscar os boletins que eram vendidos na tipografia do Teixeira de Pascoaes, na tipografia Maranos, que já não existe. Consegui negociar com a minha mãe passar o meu quarto para a zona da biblioteca. E vivi sempre entre livros, acho que isso teve um papel importante. Depois, quando tive uma atividade estudantil e política, dei sempre importância à necessidade de se terem arquivos.

Mas nessa altura não convinha.

Depende da natureza dos arquivos. Aqueles que tinham matéria mais delicada exigiam um maior cuidado. Alguns eram enterrados para maior segurança e posteriormente foram desenterrados. Muitos documentos conseguiram assim sobreviver. A PIDE assaltou-me a casa em vésperas do 25 de Abril, um ano antes. Perdi nessa altura muita coisa. Pude recuperar parte, depois da revolução, mas não tudo. Calculo que parte, devido às suas características, devia ter ido para o museu da PIDE, porque eram fichas sobre a história do movimento operário. Depois do 25 de Abril consegui recuperar vários embrulhos que ainda tinham a indicação de “apreendido na Rua Diogo Brandão”.
O meu grande problema sempre foi o espaço. Mas desde que me conheço que guardo este tipo de papéis. Significa que hoje, por exemplo, nós fizemos uma exposição no Porto sobre o movimento estudantil, e eu fui presidente do plenário durante um período muito crítico e tinha o papel das inscrições, quem é que se inscreveu para falar e interveio. Esse tipo de papéis ajudou a reconstituir uma memória. Sempre tive esse hábito de guardar coisas: é uma espécie de loucura mansa.

É um comportamento um pouco compulsivo.

É uma loucura mansa. Aliás, não necessariamente uma obsessão de um colecionador, mas também tem elementos disso. É evidente que a minha principal obsessão não é a andar a completar coleções. O que eu procuro é sempre mais documentação dentro das matérias de que o arquivo trata. Insisto, é uma espécie de loucura mansa que está descrita e está estudada. Se quiser ser filosófico, é uma luta contra o tempo. Daí o nome de Ephemera. É uma permanente luta contra a erosão do tempo. Com a noção de que qualquer pessoa de História sabe que isso é impossível. Mas que, de qualquer maneira, pode ajudar a transportar uma memória coletiva para além da geração que viveu os acontecimentos, e isso é relevante. Há coisas que estão aqui da i República, documentos sobre a monarquia, os primeiros manifestos operários que foram feitos, nós aprendemos sempre qualquer coisa a ler todo esse material.

Há uma certa ideia de que há uma verdade obrigatória naquilo que tem materialidade. Mas é possível encontrar coisas tão falsas como determinados posts de redes sociais em documentos arquivados.

Aqui no arquivo há várias falsificações: há números do “Avante” falsificados pela PIDE, há uma célebre carta falsa atribuída ao Rosa Coutinho. Isto é uma parte da memória mas, nalguns aspetos, esta parte da memória é aquela que mais faltou. Veja-se o caso, por exemplo, da história do comunismo. Durante muito tempo, a história do comunismo fez-se sem documentos, porque os arquivos estavam fechados. Depois da sua abertura começou-se a contrapor os documentos com os testemunhos. Agora atingiu-se um certo equilíbrio. Os documentos também não dizem tudo o que aconteceu. Mas uma coisa é certa: sem esta memória física, a outra memória é sempre mais débil.

Estou-me a lembrar de um caso recente, o famoso arquivo Mitrokhin parcialmente noticiado pelo “Expresso”. Lá porque o agente x escreve que o assessor de Cavaco Silva estava a soldo da KGB, isso não passa obrigatoriamente a ser verdade.

Até porque no caso dos arquivos de Mitrokhin, que é um caso que eu conheço bem – aliás, escrevi o prefácio para a edição portuguesa –, nós sabemos apenas a parte que foi escolhida pelos serviços secretos ingleses. Não se sabe os critérios dessa escolha e até que ponto os originais são fidedignos.
O que não quer dizer que haja muita coisa fidedigna. Mas isso é da natureza dos arquivos de uma guerra. Quem já viu muitos papéis tem prudência e tem algum conhecimento necessário para perceber o que se pode tomar à letra e o que não se pode. Veja–se o caso dos arquivos da PIDE: “Primeiro interrogatório: a pessoa que está a ser interrogada não quer fazer declarações.”
O segundo relatório diz: “Recordou-se” ou “Aproximou-se de nós a dizer que já se tinha recordado”…

No meio há a tortura.

Há a tortura e ainda há outra coisa: nalguns casos, no meio destas confissões obtidas pela tortura, também há histórias ficcionais. A pessoa, devido à tortura, denuncia cinco ou seis, quase sempre pessoas que já estavam presas ou detidas, e não denuncia os que estão em liberdade. Tem de se aprender a ler esta documentação. Também parto do princípio de que uma falsificação muito elaborada implica muitos recursos e tem de ser feita para um objetivo determinado.
A maioria dos papéis não justificam serem falsificados.

A nossa história não pode ficar refém dos arquivos. Vendo uma coisa mais recente: se nos gravassem os telefonemas e aferissem a partir dai o que nós pensamos, seria provavelmente uma caricatura.

É verdade. Em matérias de uma determinada natureza é preciso ter muita prudência em relação ao conteúdo dos documentos, tendo em conta até à forma como eles foram obtidos. Mas isso não implica que não haja valor no documento em si. Esse valor pode ser confrontado. Pode conferir-se o valor do telefonema com outros dados de caráter biográfico. Não é normal que um governante apareça a dizer “estou aqui em Bragança” e tenha estado numa sessão pública no Seixal. Independentemente de fazermos este tipo de trabalho, pode-se dizer que todos os documentos físicos – e por maioria de razão os falsos – são reveladores e são um aspeto da memória muito importante. Coloca-se outra questão hoje que é o confronto entre o digital e o físico. Chamo a atenção das pessoas para que isto é um arquivo que tem um aspeto patrimonial, tem a posse física dos objetos.
É evidente que há muitas campanhas eleitorais que usam já muito pouco o panfleto físico. Mas quando fazem dez comunicados na internet e apenas um é também transformado em folheto de papel, o de papel é o mais importante.

 

Voltando aos arquivos e à importância deles para se apurar a verdade histórica. No livro “Os Americanos em Portugal”, do Freire Antunes, revela-se material sobre Cunhal e Soares nos arquivos da CIA. E, a certa altura, Mário Soares aparece classificado nesses documentos como “informador” dos serviços americanos. Parece óbvio que não seria uma designação com que o próprio concordasse, apesar de certamente se ter relacionado com muita gente dessa área.

É óbvio que quem faz a análise desse material tem de ter cuidado com aquilo que lá está e precisa de perceber a cultura das organizações a cujos arquivos e documentos acede. Mas toda essa documentação, tidos esses cuidados, é relevante. Eu, por exemplo, no último volume da biografia do Cunhal uso profusamente material do FBI. A origem desse material era de um informador infiltrado colocado nos lugares mais cimeiros da hierarquia do Partido Comunista dos Estados Unidos da América, que participava nas reuniões internacionais mais importantes. E passava ao FBI os documentos mais importantes e o conteúdo das reuniões que presenciava.

Creio que alguns desses documentos eram as informações que o PCUS distribuía aos partidos.

Informação que nunca tinha sido conhecida. Vendo estes documentos, nós apercebemo-nos de que, apesar de tudo, os soviéticos mantinham bem informados os principais dirigentes dos partidos comunistas dos outros países. E essa informação incluía até matérias bastante reservadas, como é o caso de umas conversações com os chineses, já depois da rutura sino-soviética, salvo erro com o Kossygin [foi primeiro-ministro da União Soviética entre 1964-1980] a conduzir essas reuniões, numa altura em que, publicamente, já não havia conversações nenhumas. O que explica o facto de o Cunhal ser uma pessoa muito bem informada sobre a matéria internacional.

Há, aliás, nesse material do seu livro uma altura em que o relatório do FBI diz que ele discutiu os Black Panthers com os americanos.

Exatamente, e aquilo é tudo plausível. Ninguém sabe o que aconteceu com o personagem infiltrado, sabe-se que ele esteve em Argel naquele período. Fica-se a saber a discussão com os comunistas americanos que, aliás, têm posições contraditórias: um é mais hostil ao Black Power e outro mais favorável. Aquilo soa tudo a verdadeiro. É sempre necessário tentar responder à pergunta mais importante da civilização ocidental: o que é a verdade? Nietzsche escreveu uma vez uma provocação antijudaica dizendo que era simbólico que a parte mais interessante do Novo Testamento não tinha sido escrita por um judeu mas por um romano, que é o discurso sobre a verdade feito por Pôncio Pilatos. Quem trabalha sobre estas matérias sabe que o problema existe mas, mesmo no caso de serem duvidosos, os documentos são interessantes. Por exemplo, um grupo de voluntários da Ephemera está a analisar mais de 1000 cartas escritas por uma família de comerciantes do Porto que foram descobertas numa casa. Conhecemo-las como o arquivo Santos Posada porque foi nessa rua que foram descobertas. E grande parte dessas cartas são despolitizadas mas, de repente, quando há determinados acontecimentos – há membros da família que se encontram em Angola no início da guerra, ou há um choque cultural político que vem do Brasil para Portugal, tendo saído de cá durante a monarquia e regressando durante a República, não percebendo muito bem o que lhes está a acontecer –, essas cartas absolutamente triviais tornam-se muito reveladoras. Agora, elas têm de ter sempre um trabalho de exegese, um trabalho analítico.

Há um célebre livro de um escritor de ficção científica polaco, Stanislaw Lem, “As Memórias Encontradas Numa Banheira”, que aborda uma sociedade em que todo o papel desapareceu numa praga e que ficou sem memória. Nós chegámos a esta situação?

Nós chegámos a um problema de memória grave. Vou dar-lhe um exemplo: existe no Estado português um registo de todas as conversações com a troika? Existe ou não registo do que o primeiro-ministro e o ministro das Finanças disseram aos negociadores da troika? A lei obriga a que exista esse registo, mesmo que ele não seja público, mas deve existir. Têm de existir atas das reuniões, os emails e a correspondência deve estar registada, e eu tenho as mais sérias dúvidas de que existam ou, pelo menos, que estejam guardados como devem estar os documentos do Estado.

Essas eventuais lacunas são politicamente propositadas ou são apenas fruto da incompetência e irresponsabilidade?

Acho que grande parte destas lacunas são propositadas, mas também têm a ver com um desleixo crescente no registo.
A maioria das decisões políticas deviam implicar a existência de uma espécie de ata e não têm neste momento qualquer registo. Eu assisti a essa degradação no PSD. Tenho aqui muitas atas do tempo do Sá Carneiro, em que as reuniões eram devidamente registadas. Nas que eu participei como membro da comissão política já não havia atas. Não havia nenhum registo para além das notas que as pessoas tomavam. Sei que, por exemplo, muitos arquivos dos partidos não existem ou nunca foram constituídos. Há uma desvalorização da obrigatoriedade do registo e isso é muito grave para o escrutínio da vida pública. Tudo aquilo que é feito em nome do Estado português devia ser registado, seja uma carta, um email ou um sumário de uma conversa telefónica. E eu duvido que isso seja feito devidamente.

Isso não é propositado, os próprios não quererem que não fique registado?

Não podem não querer. Eles podiam não querer, mas a obrigação do membro do governo que lá está é tomar notas e fazer uma ata, para comunicar ao primeiro-ministro e para registar.

Esclareceria a questão de saber se os cortes dos funcionários públicos foram ditos para a troika como provisórios ou definitivos.

Não só. Permitiria saber quem é que propôs determinadas medidas: foi a troika ou foi o governo? Era relevante para o escrutínio daqueles anos saber se o “gigantesco” aumento dos impostos foi uma proposta do governo português, que não conseguia controlar as finanças públicas, ou se a medida foi uma exigência da troika. O que é que foi negociado no memorando? Como é que foram negociadas as privatizações? Eu gostava de conhecer os documentos e conversações para a privatização da REN, que é das privatizações que mais violam em termos objetivos o princípio da segurança e soberania nacional. Muito mais que a EDP e a TAP, porque a REN é toda a estrutura elétrica, que é sempre uma questão de segurança nacional. Nós sabemos que outros governos pressionaram o governo português a não o fazer e a não vender aos chineses a REN – há documentos sobre isso, sumários das reuniões e correspondência? Não.

Mas isso não é uma prática antiga em Portugal, essa ausência?

Não. E uma das coisas mais importantes que estão neste arquivo é, por exemplo, quando há essa documentação. Eu dou-lhe um exemplo: no arquivo Sá Carneiro há um episódio muito interessante, que é quando os EUA, no tempo do governo da AD, queriam estacionar permanentemente em águas portuguesas, ou em Lisboa ou em Sines, um porta-aviões, e o governo português recusou. E isso está tudo documentado aqui: está o pedido norte-americano, está a resposta original do Sá Carneiro, de Adelino Amaro da Costa, estão os documentos que eles pediram aos seus consultores e assessores. E está, depois, a resposta final negativa. Aqui está um caso de uma documentação que revela um pormenor importante para fazer um julgamento para o governo.

Quando afirma que não há documentos das conversações da troika é porque os procurou e não encontrou?

Eu não tenho a certeza sequer que eles existam. Já coloquei a questão várias vezes e não obtive resposta. O meu primeiro problema não é sequer saber se eles estão acessíveis a consulta, é mesmo saber da sua existência. Caso eles existam, eu admito que haja parte que não seja acessível. Nós não temos uma verdadeira lei, como nos EUA com o Freedom Information Act, e, portanto, é possível haver classificações de documentos como eram feitas no tempo da guerra colonial, que até as remessas de alimentos eram consideradas informação secreta. O que se podia entender naquele tempo porque, conhecendo uma remessa de alimentos para uma base no mato, pode–se perceber quantos homens compõem essa guarnição. O que acontece é que, com a inércia da administração, muita da informação continuou a ser considerada reservada. O que me preocupa mais do que não ser acessível é não haver registos.

Para além da cultura burocrática, da falta de democracia e incompetência, a questão não é do ar do tempo: nós não vivemos numa espécie de eterno presente acelerado em que o passado e o futuro parecem perder importância?

Isso levanta um problema: a permanente reconstrução da memória que tem um elemento geracional, quando as pessoas que viveram aqueles acontecimentos ainda estão vivas. É por isso que algumas coisas que envolvem a PIDE, a Legião Portuguesa e o comportamento de antigos governantes são muito diferentes de tratar quando as pessoas que foram sujeitas à violência e à tortura ainda estão vivas. É o caso da discussão se deve ou não haver um museu Salazar, com os objetos dele. Se for um museu que obedeça a critérios sobre o estudo do Estado Novo, acho muito bem que a documentação toda do Salazar seja preservada e que possa haver um museu em que o Salazar seja a figura principal. Não tenho nenhuma objeção a que isso aconteça. Esta parte não pode ser eliminada da História. Isto acontece com o problema do Holocausto, do nazismo, do fascismo – nós não podemos também tratar os acontecimentos da mesma maneira quando a memória ainda está viva e há vítimas vivas. Agora, é importante as coisas serem conservadas. Há um aspeto retrospetivo que é muito importante para termos identidade. Sem sabermos o que nos aconteceu, nós não temos identidade. A nossa vida é frágil, a nossa relação com o mundo é pobre. Neste arquivo, entre a documentação de ontem e hoje, qual é o interesse de muitos cartazes espontâneos [desenhados por populares em manifestações menos estruturadas como o 12 de Março e Que se Lixe a Troika]? Alguém em casa desenhou uma cartolina e levou para a manifestação. Um dia em que queiramos ver a manifestação e analisá-la não apenas do ponto de vista institucional, e perceber, para além das pessoas que a convocaram, qual os sentimentos dos presentes, o valor destes cartazes escritos numa cartolina é grande, por muito que eles pareçam incipientes.

Há da sua parte uma valorização destes momentos de micro-história para entendermos uma movimentação mais geral?

Sem dúvida. Veja, por exemplo, nós [a Ephemera] publicamos quatro livros e temos um quinto na coleção. Um deles [”Amorzinho. Correspondência entre Maria de Lourdes e Alfredo de 1934 a 1943”, organizada por Rita Maltez] é a correspondência amorosa entre duas pessoas absolutamente comuns: uma costureira e um empregado de escritório.

E que revela esse livro?

Diz imensas coisas, por exemplo, sobre a condição feminina. Quando nós lemos as cartas percebemos que o homem manipula, porque é mais conhecedor e tem mais experiência, é mais letrado – isso nota-se pela letra –, a rapariga, que é muito nova e inexperiente – por exemplo, casa grávida convencida de que está virgem. Nós podemos dizer que isto significa uma enorme ignorância sobre a sexualidade.

Como é que ela casa grávida pensando que não teve sexo?

Ela tem a convicção alimentada pelas cartas dele, em que ele lhe garante que ela está como Deus a pôs ao mundo, que é virgem.

E ela interpretou o ato sexual como?

Ela descreve-o como sendo um momento de confusão e delírio. Deve ter em conta que a ignorância, na época, sobre matérias sexuais era imensa. Aqui há uma óbvia manipulação do homem, que é uma questão de género relevante nesta época, mas ao mesmo tempo, depois, há um outro aspeto que se revela nas cartas que é a solidariedade feminina. Uma parte das cartas são sobre a menstruação: “Já veio o que tu sabes”, etc. Depois ela descreve os remédios que uma tia, a mãe e uma amiga lhe aconselham para tentar resolver o problema dela. Há uma mistura de uma perceção popular dos problemas das mulheres, que tem muitas vezes a unidade familiar entre mulheres, com o papel do homem. E depois há o reverso dos filmes portugueses dos anos 30 e 40: como era o mundo das pensões, o que significava a vida de um jovem adulto que vivia em pensões… Pouca gente imagina. O comportamento dos hóspedes, a relação que eles têm com as pessoas, normalmente mulheres, que tomam conta da casa. Tudo isso está espelhado nessa correspondência. A certa altura, ela recomenda-lhe uma rapariga para lhe lavar as costas. Há um conjunto de práticas e hábitos que aparecem numa correspondência absolutamente trivial e que nos dão a vida quotidiana das pessoas que nunca entram na História. Sobre a dita História, não há quase traço: há uma parada da Legião, as visitas das tropas estrangeiras inglesas e alemãs nos anos 30, algumas referências ao racionamento e mais nada. Isto numa correspondência que é quase diária. É muito extensa, são cerca de 600 cartas.

Nem sequer discutem a II Guerra Mundial?

Nada. Discutem o atentado ao Salazar. Ela manifesta-lhe receios sobre a instabilidade e as bombas. E isto no meio de 600 cartas de duas pessoas que existiram e a quem nós só mudamos os nomes. Mas aqui [no arquivo] há outras correspondências muito relevantes: uma troca de cartas de um militar mais velho – estamos a falar do início do século xx – que arquivava pedidos de cunhas. Tem centenas de cunhas arquivadas porque ele está num departamento do exército que pode dar continuidade às cunhas. Percebemos pela sua correspondência que uma parte importante da elite da época, generais e gente acima dele, lhe pedia cunhas que ele registava e arquivava, provavelmente não percebendo que eram cunhas. É também um retrato muito interessante para perceber como as coisas funcionavam e ainda funcionam. Devo dizer-lhe que é um trabalho que eu faço com imenso gosto. Há 15 dias fui a Oliveira de Azeméis buscar uma série de papéis de uma família ligada à indústria de uma grande fábrica vidreira que lá havia. Uma das coisas que vieram é uma espécie de agenda editada pela empresa em que, na primeira página, há uma análise económica escrita pelo patrão, e quando nós pomos as agendas em sequência é muito interessante. Temos ali, aliás, o olhar de um importante industrial de província – atualmente, a fábrica está em ruínas como aconteceu a toda esta indústria –, que faz uma análise do ano económico, estamos a falar dos anos 70 e 80, em que não havia imprensa económica. E temos também nessas agendas o quotidiano da fábrica: “Telefonei a não sei quem.”

Há a ideia de que, conhecendo devidamente a história, evitamos a repetição dos erros.

Isso não é verdade.

(Risos) Não é verdade a ideia ou que isso é possível?

A ideia é verdadeira, mas o efeito não. De qualquer forma, eu prefiro, apesar de tudo, que as pessoas saibam alguma coisa de História: tenho a esperança que se soubessem alguma coisa de História não tinham, por exemplo, feito as asneiras que fizeram na Ucrânia.

Está a falar da União Europeia?

Sim. A gente espera que as pessoas tenham alguma cultura. Mas a História não impede a repetição de asneiras. Muitas vezes, não as mesmas, mas piores.

Quando quisermos perceber a nossa história vamos ter de ver o Twitter e o Facebook?

Sim, mas também os papéis. Veja o caso das autárquicas: em 2013 devem ter sido produzidos quase 100 mil espécimes diferentes, desde um outdoor a um apito ou rebuçado. Nós conseguimos recolher, com a ajuda de voluntários, cerca de 35 mil a 40 mil – nem metade. Este tipo de recolha ativa é fundamental. Pode haver muito Twitter e Facebook mas, se quiser fazer a história dessas eleições, tem de ir a esses papéis e objetos.

É possível fazer uma história do Donald Trump sem o Twitter?

Não. Mas seria também bom conhecer a contabilidade das suas empresas, que está em papel, e as séries televisivas em que ele participou, os livros que ele escreveu. Nós vivemos numa espécie de fascínio e deslumbramento da modernidade que, às vezes, não tem sentido. O que ele faz é o que ele faria antigamente nos comunicados de imprensa. Temos que conhecer os tweets. É evidente que as redes sociais permitem a ilusão de comunicação direta. Mas não é aí que está a novidade.

Mas não se pode dizer que a tecnologia pode formatar a política?

Sim, a da ignorância.

O facto de Hitler aparecer no cinema, nos comícios e na rádio, De Gaulle na rádio, Kennedy na televisão, e Trump nas redes sociais, isso não tem consequências?

Não acho que altere em termos muito significativos. A televisão é ainda o meio poderoso. As redes sociais dão uma ilusão de participação e por isso há uma certa noção afetiva de que, de alguma maneira, as pessoas participam na decisão pública. Mas o grosso da comunicação ainda é feita por televisão. Até porque os nossos sentidos são precários. Porque uma imagem em movimento é centenas de vezes mais poderosa que um texto escrito. É o dilema de São Tomé: ver para crer. A forma mais fácil de enganar é pela imagem.

Não se pode dizer que esta erupção populista em Itália, por exemplo, está ligada às redes sociais, que é feita por essa falsa ideia do fim das mediações?

Até nos Estados Unidos e em Portugal, porque nós temos um trumpismo português. Aí, tem razão. Acima de tudo verifica-se outra coisa: há uma espécie de reservatório do populismo, como se fosse um charco em que há mosquitos, que hoje são as redes sociais. Elas não explicam o que é o populismo nem o criam. Na maior parte, tem explicações e causas económicas, políticas e sociais, como o afastamento da política em relação aos cidadãos.

Como definiria o populismo?

É, na expressão da democracia, hipervalorizar-se a expressão da opinião e do voto e subvalorizar-se o primado da lei e os mecanismos democráticos.

Uma vez falou comigo sobre as parecenças entre democracia e demagogia.

A democracia e a demagogia são muito próximas, qual é a grande diferença? São os procedimentos da democracia. O voto popular não distingue. O populismo tem uma expressão popular muito importante; o que o distingue da democracia é que esta última introduz procedimentos para garantir a racionalidade e o primado da lei. Os movimentos populistas centram–se sobretudo na opinião das pessoas não moderada pelo racional.

Mas também tem momentos de populismo que são ruturas com uma democracia aprisionada por poderes oligárquicos.

Há uma componente da vitória do Trump que não pode ser ignorada, a de as pessoas se sentirem crescentemente afastadas do poder de decisão. Veja-se o caso europeu: na medida em que se vai retirando a soberania da democracia, vai diminuindo a relação entre a pessoa e o voto. Não me adianta votar na pessoa a ou b, porque eles não podem fazer a política para a qual eu voto. E isso vai gerando uma divisão entre os políticos e a opinião das pessoas. E que tem muitas vezes mais que razão. A corrupção dissolve o sistema político.

Não há uma expressão ampliada da corrupção?

Não acho. Há uma expressão exagerada sobre o fenómeno da corrupção, mas a corrupção em Portugal é enorme. Conhecendo os mecanismos dos negócios, sabe perfeitamente que estes comportamentos são, muitas vezes, regra. As pessoas têm a perceção de que é assim. Às vezes exageram e metem tudo no mesmo saco. Mas nós nunca construímos em Portugal uma administração pública assente no mérito.

É uma questão cultural ou política?

É uma questão de pobreza. Nós somos um país pobre.

Se tivesse votado nos Estados Unidos teria votado Trump, Hilary Clinton ou Bernie Sanders?

Votaria Bernie Sanders. É ele que é a verdadeira revolução ao lado do Trump. Embora eu ache que Trump também é revolucionário. Ele não é um conservador, não é um fascista.

Um fascista pode ser um revolucionário na medida que cria uma alteração estrutural.

Mas não é nesse sentido. É um autoritário. Há tweets dele absolutamente inaceitáveis. Aquilo que ele diz no Twitter, ameaçando cortar os fundos públicos à Universidade de Berkeley porque cancelaram uma sessão com um apoiante dele por ter havido distúrbios na universidade: eu também acho mal que tenham cancelado a intervenção, mas um presidente não pode ameaçar uma universidade fazendo bullying no Twitter.

Ele sabe para onde quer ir?

Acho que ele tem tanta confiança em si que pensa que com meia dúzia de ordens muda o mundo. Depois, se aquilo sair mal, entra em falência, que foi aquilo que já aconteceu meia dúzia de vezes.

Vamos acabar mal?

Vamos acabar mal com o Trump. Ele também pode acabar mal, pode ter um impeachment. Há coisas que ele faz que violam a democracia. Aqui, a grande traição é do Partido Republicano. Estão todos calados agora. O takeover dos republicanos é inaceitável.

É possível que Trump seja bem-sucedido em termos económicos?

Sim, mas que economia? Existe a perceção de que algumas medidas são favoráveis aos negócios. Mas quebrar os acordos comerciais não parece ir nesse sentido.

Alguém deve ganhar com isso, porque ele tem muitos tipos dos negócios no governo.

Mas alguns já estão a recuar. É evidente que ele faz coisas que são saudadas por essa área. É tudo “meia bola e força”, não se augura nada de bom. O homem polariza tudo. É a grande oportunidade para os liberais americanos que eles não têm há muitos anos.

Esta mudança dos EUA pode ter consequências na Europa e reunificar a UE?

Já está a ter consequências, mas depende do que significa reunificar a Europa. A reunificação que reagisse ao Trump implicava que a UE olhasse para dentro e percebesse como é importante que as instituições democráticas tenham mais peso que o mando dos burocratas do diretório. Há duas respostas possíveis: a dos países do Sul e a do Schäuble, que é criar duas Europas, uma com soberania política e financeira e outra com países a viver de esmolas e com perda completa de soberania económica e financeira.

Portugal e a geringonça é um oásis no meio disto tudo?

Se você for ver os partidos socialistas da Europa, o que está em melhor estado é português. Encontrou uma resposta diferente que se submeter como os socialistas espanhóis aos governos de direita. Hoje as coisas só vão mudar por turbulência já não há espaço para evoluções na continuidade.