Pela Câmara dos Comuns


O espírito de William Pitt, que me tornou anglófilo e apaixonado pela cultura política britânica, resiste, hoje. Apesar das sabrinas tigresa da senhora May, ele resiste e esta semana teve um nome. John Bercow


Esta coluna de opinião chama-se “Câmara dos Comuns”. Não é por acaso. Um dos meus heróis políticos fez dela o centro da sua história. Aliás, escolheu-a por convicção democrática.

William Pitt, o Jovem – filho de William Pitt, o Velho – tinha direito aristocrático a um lugar na Câmara dos Lordes.

Era filho de um Earl, de um ex-primeiro-ministro, mas preferiu ser eleito para a Câmara dos Comuns, para o parlamento por voto. Fê-lo, com o mesmo sentido com que recusou a possibilidade que a maioria dos nobres britânicos aproveitava, no século XIX, em Cambridge, de passar automaticamente nos exames finais – e aí fê-lo com a módica idade de catorze anos, numa das melhores universidades do mundo.

A matriz prematura resistiu. Antes de chegar aos vinte e quatro, foi convidado duas vezes para primeiro-ministro. Primeiro tomou a pasta das Finanças, depois, finalmente como o seu pai, o executivo. Trabalhava horas demais, bebia vinho do Porto em excesso e era hipocondríaco.

Nunca casou. Não gostava do rei, que era doente, nem do príncipe, que obrigava toda a gente a deixá-lo ganhar nos jogos de cartas.

Mas o espírito de William Pitt, que me tornou anglófilo e apaixonado pela cultura política britânica, resiste, hoje. Apesar das sabrinas tigresa da senhora May, ele resiste e esta semana teve um nome. John Bercow.

Depois de a primeiro-ministro inglesa decidir ir aos Estados Unidos da América engraxar os botins do senhor Trump, o homem que se senta à cabeceira da Câmara dos Comuns pôs a casa em ordem.

Na visita de Theresa May aos Estados Unidos da América, a subserviência foi quase de amnésia institucional. Trump fez piadas sobre uma cooperação com mais de dois séculos. May agradeceu-lhe por “devolver a soberania ao povo”, na convenção nacional republicana.

Lamentavelmente, isto sai tudo ao lado. O populismo e o protecionismo são opostos à democracia representativa britânica, não são irmanáveis.

Suspeitei dos vários analistas que compararam Merkel a Theresa May, imaginei que aqueles que o faziam entre Reagan e Trump estivessem a pastilhas, mas dizer que a primeiro-ministro inglesa pode ser uma Margaret Thatcher é só indigno.

Recomendo à senhora May que vá ler um bocadinho dos pais do seu partido : “A única coisa necessária para o mal triunfar é os homens bons nada fazerem”. Pode ser que entenda e cesse de alienar o património político do Reino Unido.

Foi, portanto, com alívio que ouvi o speaker of the house, John Bercow, afirmar que não convidaria o presidente Trump para discursar no parlamento aquando da sua prevista visita de Estado a terras de Sua Majestade.

May pode gabar-se de ter conseguido a promessa de “um compromisso total” de Trump com a aliança atlântica, mas a verdade é que se está a vangloriar de algo que já era sabido.

Trump criticou a NATO, sim, mas antes de May ir aos Estados Unidos o secretário de Defesa norte-americano já se havia comprometido com a organização. Aliás, Trump já afirmara que a palavra final seria sempre do General Mattis apesar das suas críticas. E Mattis sabe que a manutenção da NATO é fulcral para conter a Rússia do senhor Putin. O conseguimento de May é nulo e vir reclamá-lo é ridículo para uma pretensa estadista.

Mas regressando ao senhor Bercow, que é do mesmo partido conservador que Theresa May, convém ler com atenção. Disse o speaker que falar no parlamento era “uma honra para merecer e não um direito automático”.

“Antes da imposição do banimento de migrantes, eu já era fortemente contra um discurso do Presidente Trump em Westminster”, continuou. “Depois da imposição do banimento de migrantes, estou ainda mais fortemente contra um discurso do Presidente Trump em Westminster”.

Mas mais: “nós valorizamos a nossa relação com os Estados Unidos e se a visita acontecer está bem acima das minhas funções”.

No entanto, “quanto à Câmara dos Comuns, sinto que a nossa oposição ao racismo e ao sexismo, o nosso apoio à igualdade perante a lei e o nosso sistema judicial independente são considerações enormemente importantes”.

Perante algumas reações negativas à tomada de posição de Bercow, este reafirmou-a “honesta e honradamente”.

Gostava que alguma direita portuguesa e a senhora May escutassem John Bercow. E gostava também que se perguntassem se o problema de um presidente que diz que a Bíblia é o seu livro favorito mas não consegue citar uma passagem é só o protecionismo.

Não vos passaria pela cabeça dizer a mesma coisa do Partido Comunista, pois não?