Artigo publicado inicialmente a 18 de setembro de 2016
Samira e Viviane tinham medo do mar. Sónia Lima costumava levá-las a passear à praia mas, tal como ela nunca ia ir à água, também as filhas não se aproximavam da rebentação. «Viam um mar imenso e tinham medo e ainda bem que tinham, apesar de acontecer o que aconteceu», disse a mulher, acusada no final de agosto por crime de homicídio qualificado das duas filhas junto ao Forte Giribita, em Caxias, na noite de 15 de fevereiro passado.
Questionada pelo psiquiatra sobre o que queria dizer com esse «ainda bem», Sónia, de 37 anos, respondeu que assim tinham noção do perigo. Esta foi uma das afirmações que ajudaram a desmontar o caso. Se inicialmente tudo apontava para um quadro psicótico com ideação suicida, esses sintomas regrediram em dois dias e Sónia revelou uma estrutura cognitiva intacta, sem sinais de delírio, sem motivos clínicos para ser declarada inimputável. Insistiu que tudo não passou num acidente, mas perante tudo o que disse e a personalidade que demonstrou, a investigação acredita que «agiu de forma livre, deliberada e conscientemente com o propósito de tirar a vida às filhas» – diz a acusação do Ministério Público, constante no processo, a que o SOL acedeu.
Por que fugiria Samira?
Nas primeiras declarações, Sónia disse lembrar-se de sair do carro com as filhas dizendo-lhes que ia fazer chichi, mostrando confusão quanto ao que se passou depois, mas afirmando que só pensava em «ter paz e dar paz às filhas», As perícias de personalidade detetaram contradições e traços paranoides, antissociais, narcísicos e instabilidade emocional. Sónia atribuiu responsabilidades ao ex-companheiro e pai das filhas, acusando-o de maltratar e abusar sexualmente das crianças. Ao mesmo tempo que passou a insistir num acidente: «Se eu soubesse que isto ia ter este desfecho, tinha-me ido embora», disse a certa altura. Mas, a tratar-se de um acidente, como poderia ter sido previsto?
As inconsistências não ficaram por aqui. Segundo Sónia, fora Samira, a filha mais velha (três anos), a pedir para fazer chichi. A mãe, que andara toda a tarde de carro com as filhas, disse ter parado no primeiro sítio apropriado. Descera para a zona de empedrado junto ao forte e, enquanto aproveitou também para urinar, com a filha mais nova nos braços, Samira correra para as rochas onde o mar acabaria por levar as duas irmãs, a mais nova de 15 meses. Teriam ficado as três presas no mar.
A noite estava, porém, ventosa, fria, com a maré a subir. As meninas andavam há alguns dias constipadas e a própria mãe reconhece que elas tinham medo do mar. Por que procuraria a criança um lugar escondido para fazer chichi? «Samira tinha três anos. Nesta fase do desenvolvimento ainda não há, de uma forma clara, a noção de pudor. Além disso, estando já de noite, é mais provável que uma criança queira permanecer junto da figura que reconhece como protetora», lê-se no relatório da perícia psicopatológica. Além disso, havia uma zona de pinheiros onde poderiam ter parado sem ser vistas. Sónia tem limitações numa perna: por que andaria 15 metros, se não havia ali ninguém?
Não foram só as contradições a chamar a atenção dos peritos. Sónia procurou conduzir as perguntas «despejando» de forma ininterrupta acusações contra o ex-companheiro. Mostrou teatralidade e vitimização. Revelou-se distante e com baixa empatia. Quase nunca pronunciou o nome das filhas e nunca se referiu ao sofrimento que elas terão sentido «por serem levadas pelo mar». Procurou transmitir um sentimento de tristeza que se revelou «dissonante com as expressões emocionais e verbais». Como dizer que a filha Viviane fazia dois anos no dia de uma sessão e acrescentar «mas adiante…». Ou «não devia ter parado o carro, agora já está».
Segundo os técnicos, Sónia manteve uma postura defensiva e tentou simular sintomas psicológicos graves, acabando por inviabilizar um conjunto de provas. Chegou a mostrar-se preocupada com o cabelo e unhas que iria levar a julgamento. Imaturidade, desconfiança interpessoal, instabilidade emocional, egocentrismo, baixa tolerância à frustração e impulsividade são algumas características usadas para descrever o perfil de risco – uma perturbação de caráter que, contudo, não pode ser considerada doença mental grave. Sónia apresenta ainda sinais de depressão, mas os peritos sustentam que seriam ligeiros e terão sido agravados pelos acontecimentos.
Estar a passar por um período de stresse elevado, com a separação do pai das crianças, a perceção de que este poderia ficar com as filhas e achar que elas estavam em perigo, estar desempregada e sem autonomia financeira poderão ter sido as motivações. A contrariar a ideia de acidente, os peritos acabaram por apresentar ainda afirmações de Sónia, como a de que um dia se confirmará que foi o pai das crianças que a levou a «fazer isto». Sónia negou sempre culpa, intenção e todos os indícios, como ter deixado o telemóvel desmontado no carro: tinha caído. Desvalorizou duas notas encontradas: um papel com a frase «quis ser mãe», que disse ser um poema inacabado, e um bilhete onde se lia «pai, desculpa, não aguentei mais, as minhas filhas foram maltratadas», que alegou ser uma referência à separação do pai das crianças.
O beijo que desesperou Sónia
Sónia justificou «todos os factos e a sua situação atual» com um episódio no início de novembro de 2015, quando viu o então companheiro dar um beijo demorado na face da filha mais velha, que considerou inapropriado e de natureza sexual. Ao confrontá-lo com esse «beijo técnico», como lhe chamou, Nelson pediu-lhe que falasse baixo por causa dos vizinhos, o que, na sua opinião, confirmou as suspeitas.
Dias depois, quando a filha teve de ir ao hospital e lhe foi diagnosticada uma infeção urinária, associou os factos e suspeitou que a filha estaria a ser vítima de abusos. Disse ser também ela vítima de violações, pois não tinha sexo consentido com o companheiro. Na análise psicológica, os peritos consideram que as afirmações apontam para distorções cognitivas, como inferências arbitrárias e catastrofização.
Entre novembro e janeiro, Sónia apresentou ainda assim duas queixas por violência doméstica. A família foi sinalizada à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de Sintra, que chegou a visitar mãe e filhas e terá motivado a mudança de Sónia para casa de uma tia, uma vez que os técnicos consideraram que a casa dos pais onde se instalara após a separação não tinha condições.
As queixas desencadearam inquéritos judiciais, cujo teor não é referido no processo. Nas conclusões, a investigação assinala que, mesmo admitindo maus tratos e abusos, isso não seria justificação para Sónia matar as filhas. «Se tivermos em conta o elevado número de crimes de abuso sexual de menores e de violência doméstica, constatamos que são muito raros os casos em que as progenitoras matam os filhos e até mesmo nestes casos racionalmente e legalmente não há justificação para tal conduta».
As últimas horas
Naquela segunda-feira, Sónia contou que as meninas acordaram felizes, a saltarem-lhe para cima. O pai de Sónia perguntou-lhe se queria ir com ele a casa da tia, ela disse que iria antes tratar de uns assuntos. O mecânico reformado diz ter sentido a filha mais cabisbaixa do que o habitual, mas não ficou desconfiado. Nunca ninguém suspeitou que Sónia pudesse atentar contra a sua vida e das filhas. Nem Nelson, – ela só era hostil em relação a ele.
Sónia terá saído de casa pela hora de almoço, sem destino e com o intuito de ter um programa de «mãe e filhas». Pararam num McDonald’s para comprar o almoço e comeram no carro. Sónia deu de mamar à filha mais nova.
Passaram pelo Guincho, passearam num parque e viram montras, mas estava frio demais para andar na rua. Estariam de regresso a casa dos pais quando pararam junto à praia de Caxias. Os gritos de socorro da mãe e da filha mais velha foram ouvidos por um taxista, pelas 20h30. O homem testemunhou ter visto uma criança agarrada à mãe. Chamou o INEM, veio à estrada pedir socorro e quando decidiu ir tentar tirá-las do mar já não avistou a menina. Foi ele que trouxe a mãe para cima. Sónia disse não se lembrar de quem a salvou e não saber por que motivo não foi engolida pela água. A bebé foi encontrada às 22h23: tentou-se em vão reanimá-la durante 45 minutos. O corpo de Samira apareceu a 21 de fevereiro. Teria feito quatro anos no dia anterior.