“Que tipo de ódio pode levar um homem a matar um bebé que chora pelo leite da mãe, ou uma mãe a ter de presenciar a sua morte enquanto é violada em grupo pelos soldados que a deviam proteger? Que tipo de ‘operação de limpeza’ é esta?”, indignava-se Zeid Ra’ad al Hussein, o alto comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, ao apresentar, na semana passada, o resultado da investigação às atrocidades cometidas durante os últimos meses pelo exército birmanês contra a minoria muçulmana rohingya. Matança de bebés, crianças, mulheres e velhos, fogo aberto sobre as pessoas em fuga, aldeias inteiras queimadas, detenções em massa, violações e violência sexual sistemática, a destruição deliberada de comida. Isto perante o silêncio da Prémio Nobel da Paz, Aung San Suu Kyi.
“Em 1982, os rohingya viram os seus direitos de cidadania revogados, ficaram efetivamente sem Estado e enfrentam desde então restrições severas em áreas como o acesso à educação, ao movimento dentro do país e à liberdade religiosa”, escreveram recentemente, numa carta aberta dirigida à líder birmanesa, 12 prémios Nobel da Paz.
“Apesar de pedidos redobrados para que Aung San Suu Kyi tomasse atenção à situação, estamos frustrados por ela não ter tomado qualquer iniciativa para assegurar os direitos à cidadania plena dos rohingya. Suu Kyi é a líder do país e é dela a responsabilidade de liderar, e liderar com coragem, em direção à compaixão e ao humanismo.”
Apelos que caíram em saco roto: a líder birmanesa continua a recusar-se a usar o nome rohingya para designar a maior comunidade muçulmana no país e das minorias mais perseguidas do mundo. “A nossa posição em relação a este assunto é a de que os termos controversos devem ser evitados.” Se não nomeamos algo, não lhe damos existência. Pouco difere dos generais que sempre combateu.
Chegada ao poder com uma agenda de reconciliação após um conflito de 70 anos e de maior abertura para com as minorias discriminadas pelas décadas de governo militar, Aung San Suu Kyi criou um Ministério para os Assuntos Étnicos, propôs uma conferência nacional de paz para pacificar as bolsas de conflito no norte do país e formou um comité para a paz e estabilidade no estado de Rakhine. Desde a independência, em 1948, que Myanmar nunca teve uma paz total: não há um único acordo de paz que tenha tido a anuência de todos os grupos que constituem o mosaico étnico do país. O governo nem sequer reconhece os rohingya como uma etnia, descrevendo–os antes como “imigrantes ilegais” do Bangladesh ou “bengalis”, trazidos pelos colonizadores britânicos que governaram Myanmar até 1948. Porém, a generalidade dos historiadores apontam para uma presença de muçulmanos no território birmanês que remonta ao século xi. Reconhecer o termo rohingya (que significa “habitante de Rohang”, o nome pelo qual era conhecida Rakhine) significaria reconhecer que também fazem parte do país.
Em outubro, a situação volátil em Myanmar agudizou-se na sequência de um inédito ataque de um grupo rohingya contra postos militares na fronteira com o Bangladesh. A punição das autoridades foi imediata e concentrou-se na zona norte do estado de Rakhine, vedada desde então pelo exército e onde nem os investigadores da ONU foram autorizados a entrar.
Para os analistas do International Crisis Group, o “aprofundamento do ciclo de violência” em Rakhine encerra um perigo: “a radicalização de parte da população rohingya, que os grupos jihadistas podem utilizar para os seus próprios objetivos”.
Escrevo este apontamento na praia de Cox Bazar, no golfo de Bengala, onde, como nas praias gregas, se cruzam turistas e refugiados. Meio milhão de rohingya fugiram nos últimos anos de Myanmar para o vizinho Bangladesh, mas apenas 32 mil têm o estatuto de refugiados. Desde 1992 que o governo do Bangladesh aplica a política de negar aos rohingya este estatuto. Vivem em campos do ACNUR ou campos informais sem qualquer réstia de dignidade. Travam uma luta invisível pela sobrevivência. O Bangladesh planeia enviá-los para a ilha desabitada de Thengar Char e responsabiliza o país vizinho pelo “incómodo”.
Que se seguirá? Teme-se o pior.