Imaginemo-nos parados num deserto, sem qualquer estrada marcada no chão. Podemos ir para qualquer lado, o que nos parece conferir uma total liberdade, mas ficaremos sem saber quais os rumos, os melhores traçados, qual até o destino a que o destino nos leva. O mesmo se diz aplicando a velha metáfora das margens do rio: se forem demasiado estreitas, o rio será turbulento, apertado, inconformado, saindo do leito de modo caótico e anacrónico ao mínimo aumento do seu caudal, ao mais pequeno aguaceiro; por outro lado, se as margens forem demasiado amplas e sem nenhum leito digno desse nome, o rio espraiar-se-á, porventura manso, mas nunca chegará à foz, que é o seu destino natural.
Construir esses limites, na medida atempada e acertada, relativamente a tantas e tantas situações, tentando compreender e entrosar tantos e tantos sentimentos, desígnios, objetivos, interesses de outras tantas e tantas pessoas de diferentes origens, idades e vontade, é um enorme quebra-cabeças para qualquer pessoa.
Os limites fazem bem e são fundamentais para que o ser humano cresça forte e feliz. Uma pessoa que vive sem os limites adequados não se transforma automaticamente num cidadão íntegro e livre, como se acreditava há algumas décadas, numa mistura de ingenuidade e ignorância. Pelo contrário, sabe-se que a ausência de limites pode transformar um ser humano em alguém inconsistente, incoerente, desorientado e dependente. O “bom selvagem” de Rousseau, sem aprender a existência de limites, terá mais probabilidades de se tornar uma pessoa selvagem do que uma pessoa boa.
As pessoas a quem apenas é dito sim não precisam de ter confrontos, não exercitam a sua inteligência na busca de alternativas para conseguirem o que querem nem têm necessidade de lutar para convencer os outros de que estão certas, perdendo a capacidade de argumentar. Tudo é possível a priori e isso faz a pessoa fraca, muitas vezes tirana em casa mas covarde fora dela.
Logo na infância, o confronto com os adultos prepara a criança para os confrontos da vida e para a conquista da autonomia – primeiro com birras (que não podem vingar), depois com argumentações (onde pode ganhar, se for inteligente, astucioso e se tiver razão e usar uma boa argumentação para a defender). Quem não passa por este processo não sabe o que quer e fica dependente da posição dos outros ou submete-se, não desenvolvendo capacidade de luta, de afirmação de identidade, e carecendo de referenciais próprios.
Uma pessoa nasce no mundo dos instintos e impulsos – o id, como designou Freud. Precisa depois de um sistema de valores e regras, o superego, que ajuda a aprender a transformar os impulsos em comportamentos assertivos e afetos discriminados, no que designamos por um ego bem estruturado e equilibrado. Este processo desenvolve-se em paralelo com a estruturação do cérebro e da capacidade de aprendizagem… ou seja, toda a vida.
O ser humano tem sentimentos e desejos, vontades e pulsões: gostar, querer, amar, ser gentil, generoso e tolerante emparelham com odiar, detestar, ter inveja, ciúmes, etc. É por isso fundamental educar com limites. Não ambicionamos a perfeição do ser humano, que levaria a que fossem reprimidos e aniquilados todos os componentes negativos do temperamento e dos sentimentos, mas o processo de ajudar o ser humano, com os seus defeitos e feitios, virtudes e talentos, a conhecer, desenvolver e ter gozo no processo de aperfeiçoamento, e a viver a vida segundo normas internas e externas que conduzam a paz interior e a paz relacional com o mundo exterior.
Reconhecermos a pluralidade dos temperamentos, os seus aspetos positivos e negativos, qualidades e limites, ajuda a pessoa a sentir-se bem consigo própria, a não ter uma noção errada do que é ou pode vir a ser, mas a estimular a luta para conseguir atingir aquilo que sabe poder vir a ser… com limitações e incapacidades.
Houve uma altura em que a “pessoa que se desejava ser” estava a milhas da pessoa comum, levando a frustrações, desinvestimento e desistência. Hoje, defende-se que é entendendo o que é um ser humano, nas suas vertentes de animal, pessoa e cidadão, que se alcançarão patamares individuais e coletivos de maior tolerância, empatia, solidariedade e humanismo, para lá do sentimento de dever, conhecimento e defesa dos direitos, respeito e responsabilidade pessoal e social. O respeito por si e pelos outros são condições essenciais para um comportamento ético.
Não queiramos, pois, que as pessoas no geral sejam “boazinhas”, mas que façam vingar os seus sentimentos e comportamentos bons. Os limites ensinam, por exemplo, que o espaço individual termina quando se invade o espaço do outro. Para cada direito tem de haver um dever, e para cada passo de autonomia, um passo de responsabilidade. As opções que se fizerem são para viver o hoje e para projetar o amanhã, e isso só pode ser feito com a consciência do momento presente e a aprendizagem com base na experiência passada, seja a do próprio, seja a da comunidade e da espécie humana, em momentos históricos que antecedem o dia atual.
Fala-se cada vez mais, e com razão, de um mundo hedonista, escravo do consumo de bens supérfluos, visando a ostentação e o show-off, e o caso Trump (e não só!) é um exemplo aterrorizador do que está para vir e do que já cá está (sempre esteve, mas pensou-se domável). Todavia, ao contrário de alguns que creem que apenas arrasando a sociedade atual, as suas regras e a democracia plena se pode crescer, entendo que é possível e desejável que as pessoas tenham o que necessitam, mas que sintam que os bens de consumo, a liberdade individual e a própria felicidade se conquistam e exercem através de condutas éticas, e não arrasando os outros ou corrompendo e fintando as regras sociais, tornando indistinguíveis, dada a ausência de limites, os conceitos de bem e de mal.
Os quatro cavaleiros do Apocalipse já estiveram mais longe. Começa a sentir–se o som dos cascos dos seus cavalos e “o cheiro da peste, da morte, da guerra e da fome”. Nunca como hoje houve a necessidade de relembrar quão fundamentais são os limites inerentes a uma vivência saudável da condição humana. Dizem que os animais pressentem o perigo antes dos humanos: obrigado, pois, Tenrinha, por me teres dado este mote no nosso passeio de ontem.
Pediatra
Escreve à terça-feira