“Nunca me senti atraída pelo dinheiro ou pela glória”, diz Fanny Ardant, atriz em mais de 80 filmes, agora também realizadora. Com os agradecimentos devidos a Paulo Branco que um dia “apareceu no seu cavalo” a dar-lhe a oportunidade de fazer o primeiro filme, em 2009, num trabalho em conjunto que continua até hoje. Daí que aconteça em Lisboa, sua “casa cinematográfica”, esta conversa, a pretexto da estreia de “O Divã de Estaline”, retrato íntimo de um ditador com tanto de provocação como de risco. Mas é esse o caminho, pelo menos o seu, contra os maniqueísmos, contra o mundo a preto-e-branco. “Estaline é monstruosamente humano”, diz-nos. “É de má-fé dizermos que toda a gente é muito boa e que ele é muito mau.”
Para a sua terceira longa-metragem escolheu fazer este retrato íntimo, ficcional de Estaline, a partir do romance de Jean-Daniel Baltassat, porquê?
Mais do que sobre Estaline, queria fazer um filme sobre o poder e a relação entre o poder e as pessoas e as relações conduzidas através do medo. Escolhi aquele que pertence à memória coletiva: toda a gente sabe quem é Estaline e toda a gente sabe desde o início de que tipo de poder se trata. Eu não quero saber do retrato de Estaline, o que fiz foi um conto, uma fábula, e estava interessada em mostrar como é que alguém se comporta quando perde a dignidade, quando perde os seus sonhos namorando o poder. Há muitos arquivos sobre Estaline, documentários, livros de História; se quiserem saber a verdade sobre Estaline, não é no meu filme que a vão encontrar. Eu aproveito-me desta invenção daqueles três dias com Estaline, três dias com o poder absoluto. E acho que nos nossos dias, nas nossas democracias, já não temos este problema com as ditaduras, mas continuamos a ter, do meu ponto de vista, uma má relação com o poder do dinheiro, do capitalismo… o poder.
E porquê este retrato em particular, a partir deste livro?
Estava à procura de um papel para o Gérard Depardieu, queria voltar a fazer um filme com ele porque é um grande ator, e um dia, numa livraria, vi este livro. Sempre me interessei pela história da Rússia, a sua cultura, os seus escritores, os seus músicos, os seus poetas, os seus artistas, e li o livro, e ao lê-lo percebi que estava aí o papel de que andava à procura. Adaptei-o deixando de parte todos os aspetos que não me interessavam para me focar em Lidia [a sua amante, interpretada por Emmanuelle Seigner] e em Estaline.
Dizia que o que lhe interessava era explorar a questão do poder, mas o que vemos aqui não deixa de ser uma história de amor também. E disse uma vez numa entrevista que a única coisa em que verdadeiramente acredita é o amor.
Sim. Porque, se repararmos, quando Estaline tem aquela conversa com Lidia e Danilov [Paul Hamy], diz: “Acham que podemos trair o amor sem risco?” Estaline sabe que ele trai a sua noiva. E acho que o problema do fim do amor entre Estaline e a sua amante, com aquela espécie de jogo de sedução entre Danilov e Lidia e a traição de Tatiana, é a questão da traição. Porque, por exemplo, a mulher de Estaline suicida-se e, para ele, essa foi uma terrível traição. Está a fazê-lo sentir-se culpado de quê? Falava no poder, mas é também sobre o medo e o poder do amor. O medo de que esta pessoa que amamos já não nos ame, o medo de já não agradar a alguém, o medo do abandono, Estaline passa por isto. Está a ficar velho e aparece Danilov, um rapaz bonito com quem nunca poderá rivalizar. [O filme] é sobre o medo de se perder o que se tem – pode ser a alma, o amor, a possibilidade de ser um grande pintor – e acho que é quando se começa a ficar com medo de perder que se perde.
Quase nos esquecemos de que estamos a falar sobre Estaline. Não é arriscado partir para um retrato deste género de uma figura histórica como ele, de um ditador?
O conformismo dirá “como é que ela se atreve a fazer um filme sobre o monstro que foi Estaline?”. Mas não me interessam pessoas conformistas, educadas a ver a preto-e-branco. Vivemos numa sociedade que vê pessoas más e pessoas boas…
… e não é bem assim.
Não, a verdade é muito mais complicada. Não faço uma ode a Estaline, mostro-o como era, como uma personagem shakespeariana, e as pessoas também não vêm dizer “como é que se atreve a retratar Ricardo iii” ou “como se atreve a retratar Macbeth”, porque é estúpido. Estaline é monstruosamente humano, é de má-fé dizermos que toda a gente é muito boa e que ele é muito mau. Não. Nunca seria capaz de fazer um filme sobre Hitler, porque ele repugna-me, construiu uma sociedade abjeta. Mas a sociedade comunista, no princípio, era uma utopia, um grande sonho, eu admiro os bolcheviques. E interessou-me este homem inteligentíssimo, muito culto, que falava muitas línguas, e como um sonho assim se tornou aterrorizador. A resposta são as pessoas, porque quando começamos a dizer que sim a tudo, como um carneiro, a fazer o que nos dizem, então estamos preparados para ter uma ditadura.
Fiquei a pensar no que disse sobre Depardieu, que conheceu no princípio da sua carreira como atriz em “A Mulher do Lado”, de François Truffaut. Não o escolheu para este papel, escolheu este papel para ele.
Adoro a sua liberdade, o seu sentido de provocação, a sua inteligência, o seu gosto de viver, a sua acuidade. É impossível retratá-lo: assim que encontramos uma definição, já não é verdade. Consegue ser sombrio e consegue ser divertido como uma criança ou um palhaço, e consegue fazer qualquer papel. Não é um conformista. Eu não gosto de pessoas conformistas, sempre com medo de não estarem na linha, no politicamente correto. Temos demasiado disto.
Foi a última musa de Truffaut…
Quando me vêm falar nisso… eu nunca falo sobre François Truffaut [risos].
Não era sobre ele a pergunta. Era sobre todos os grandes realizadores com quem trabalhou no princípio da sua carreira, não só Truffaut, também Alain Resnais, entre outros. Como é que, depois disso, se consegue olhar para os projetos que vêm a seguir sem que pareçam um passo atrás ou trabalhos menores?
Depois disso fiz muitos filmes e a alegria e o prazer de estar em rodagem nunca mudam.
As pessoas com quem se trabalha não são assim tão relevantes?
Não. Posso fazer um filme com um grande realizador ou um filme com um jovem principiante, com um bom argumento. O que me interessa não é o sucesso, é sentir-me viva a fazer o que faço. Só temos uma vida, portanto, um mau filme que me deu prazer fazer, sucesso, insucesso… é a vida. O que me interessa é que adoro ser atriz.
E o que a levou a esta nova fase da sua carreira, à decisão de começar a fazer os seus próprios filmes?
Não há uma explicação. Continuo a trabalhar como atriz em França, seja em cinema ou em teatro, e nunca desistirei disso, é demasiado forte em mim. Podia dizer que, de repente, deixou de me interessar, mas não. Simplesmente tento fazer as duas coisas, mas se me perguntar porquê… não sei responder.
Talvez porque a complete de uma outra forma?
Talvez. Às vezes pedem-me para cantar e eu digo que não. Disse que sim a isto porque costumava escrever muitas histórias no escuro quando estava a trabalhar em teatro, por exemplo, porque tinha as tardes livres, e então podia escrever enquanto esperava pela hora de entrar em palco. Más histórias, histórias estranhas, histórias que não interessavam a ninguém, e um dia apareceu o Paulo Branco no seu cavalo e fiz o meu primeiro filme, como quando estamos a tentar tirar água de um poço e, de repente, ela chega. É por isto que gosto tanto de Portugal, porque é a minha casa, a minha casa cinematográfica, o lugar onde posso fazer isto.
Esta é a sua segunda vez em Portugal em três meses.
Já passei aqui muito tempo, já vim para trabalhar como atriz, depois como realizadora… Há três países onde passo muito tempo em trabalho: Itália, Portugal e Rússia. Não falo português (nem russo), mas sinto-me em casa aqui. Nunca visito Portugal, trabalho em Portugal, e isso faz-me sentir que pertenço à cidade, como, quando vou a Paris trabalhar, não sou uma turista. Lisboa e Paris são cidades muito turísticas, não gosto disso.
Como começou esta colaboração com o Paulo Branco, que tem produzido todos os seus filmes?
Conheci-o como produtor e, de repente… Já não me lembro de como o conheci, sei que, quando o conheci, falámos de cavalos, e que ele confiou em mim para o meu primeiro filme [“Cinzas e Sangue”, 2009], rodado na Transilvânia, não em Portugal, com meio elenco francês e a outra metade romena. Sentimo-nos bem juntos e acho que o Paulo Branco é um dos últimos grandes produtores porque adora cinema e gosta de não ter o caminho completamente aberto, como nos filmes comerciais, e é isso que faz dele um grande produtor. É um aventureiro, com um grande caráter também, não é de andar aos beijinhos. Falávamos de pessoas conformistas, ele não é uma delas.
No seu filme seguinte, “Cadências Obstinadas”, já veio filmar a Portugal. Como foi essa experiência?
Sim, já foi um filme com atores portugueses, o Nuno Lopes, trabalhei com um excelente diretor de fotografia, o André Szankowski [“Mistérios de Lisboa”, “Linhas de Wellington” e “A Gaiola Dourada”]. Quanto estamos no set esquecemo-nos de que estamos num país estrangeiro, a linguagem cinematográfica é sempre a mesma, e não tem a ver com o uso das palavras em inglês, tem a ver com estar-se pronto. Lembro–me de ter ido à China fazer um filme e que toda a gente estava a falar em chinês, que é muito diferente, e de não me sentir perdida, porque estava no set. Na cidade, sim, mas no set… era a minha casa. A claquete, começa, e é o mesmo. Quando filmei nos Estados Unidos também, é o mesmo. Para uma atriz é o mesmo fazer um pequeno filme de quatro dólares ou uma grande produção de milhões. No momento em que dizem “silêncio, ação”, qual é a diferença?
Mas entre as dezenas de filmes em que já participou não há uma lista de preferidos?
Acho que terá de me fazer essa pergunta no meu leito de morte [risos]. É verdade que há filmes em que fui muito feliz mas, como lhe disse, o meu único luxo foi sempre ter feito o que queria fazer. Nunca me senti atraída pelo dinheiro ou pela glória, sempre segui os meus desejos. E talvez tenha feito maus filmes ou filmes sem sucesso, mas o que interessa é que, no momento em que os fiz, fui feliz.
Chegou a recusar-se, por exemplo, a fazer um anúncio publicitário quando era ainda muito nova.
Sim! Era muito nova, mas tinha convicções políticas demasiado fortes para dizer que sim a uma coisa para a qual tinha de me vender. Tentaram convencer-me dizendo-me que podia aproveitar esse dinheiro para fazer algo de que gostasse, mas eu disse “não, não”. Tem de haver sempre uma boa razão para se aceitar dinheiro, mas só é necessária uma razão para se dizer que não, “não vos pertenço, não quero ser parte desse mundo”. E nunca me arrependi. Para uma atriz há anos bons e anos maus, mas no fim acabamos por seguir a nossa liberdade. Por isso é que digo que o meu único luxo é ter essa capacidade de dizer que sim ou que não. Pode ser um filme muito bem pago; se não gostar dele…
Começou a sua carreira no cinema já algo tarde, primeiro estudou Ciência Política. Porquê?
Foi muito difícil, no princípio, dizer aos meus pais que queria ser atriz. Então estudei, tive o meu passaporte para a liberdade e fui estudar teatro. Foi difícil, havia pessoas que me diziam que desistisse, que usasse o meu diploma, e eu disse sempre que não. Até perto dos 30 foi difícil mas, de repente, aconteceu.
Sim, quando fez “Les Dames de la Côte”, de Nina Companeez, e chamou a atenção de François Truffaut, que procurava uma atriz para “A Mulher do Lado” [1981].
Um ótimo filme televisivo que teve um grande sucesso. Nessa altura, se estivéssemos a trabalhar no teatro, continuávamos no teatro; se estivéssemos na televisão, continuávamos na televisão. E era televisão, mas o François Truffaut era um homem livre e chamou-me para trabalhar com ele. Quando apareci para trabalhar com ele perguntavam-lhe quem era aquela rapariga, de onde vinha, do teatro ou da televisão, e Truffaut respondia: “De lado nenhum.” Voilà. E é verdade que passei por uma fase difícil, mas soube sempre por que razão queria fazer isto. Talvez as coisas acontecerem demasiado rápido seja um perigo. Eu era muito determinada e o facto de não ter sucesso nunca me deitou abaixo, não. Seria muito mais estranho para mim ter tido logo sucesso.