Inspire fundo, e agora mergulhemos onde a pressão é muita e a luz só entra pedindo toda a licença. Estas águas tiveram a sua conta em termos das fabulosas bestas que dominam as profundidades, aquelas que se preservam das turbulências do mundo cá em cima. Falo da língua portuguesa e dos seus monstros sagrados. Note-se como eles não constelaram a nossa literatura de grandes personagens míticos: não há um Quixote virando os restos da nossa dignidade, um Hamlet indagando-se junto dos fantasmas do sangue, nem desventurados como Crusoé; não temos espíritos científicos, minuciosos como um Holmes ou um Poirot, e nesta língua não se fica acordado até mais tarde por causa de criaturas do tipo Frankenstein ou Drácula, nem as portas do fundo da alta sociedade serviram de revelação a uma Karenina, a nossa culpa não fez um Raskolnikov, e, como já se percebeu da analogia que venho gargarejando desde o início do parágrafo (e que longo já vai), não temos uma baleia branca a ameaçar afundar–nos com um golpe de cauda.
Se até os poetas foram um tanto desleixados nas suas manobras épicas, se “Os Lusíadas”, a que nos agarramos tanto, têm mais de crónica fantasiosa para levantar a moral do que de verdadeira iluminação do espírito, então temos de convir que as grandes lendas nunca foram o nosso forte. Vamos tendo exemplos de fibra em muitos capítulos, há os sermões dirigidos aos peixes, um incesto aqui, um amor de perdição ali, temos uns tipos sociais muito bem apanhados – é difícil até não enfiar a carapuça num dos mil retratos e acusações que nos pintam mais variados até do que realmente somos. (Os génios deliram sempre um pouco, de outro modo dariam por si demasiado sozinhos.) Há, portanto, páginas em que o perigo do corte no papel podia servir de guilhotina a muitos. Esplendorosos libelos, desafios aos costumes, ao provincianismo, à beatice, não nos falta uma linhagem de valorosos malditos que se viram, não digo gregos, mas ETs para se safarem do linchamento das boas consciências e da sociedade quando esta ainda mostrava suficiente apego ao mundo literário para se indignar.
Mas vamos ao problema, e esse parece ser o facto de não ter ficado de séculos de suor literário um personagem daqueles que servem depois para os povos se mirarem neles, ajustando o seu reflexo, achando-se míticos. Deste lado do Atlântico, o que temos é um nevoeiro que não acaba de beliscar-se, meio impúbere, Sebastião sumiu-se, e a falta de um osso só foi todo o legado de um espírito que não acabou ainda de ser enterrado pela História.
Então, a questão que se põe é esta: que andaram a fazer os monstros sagrados com a língua? Faltou-lhes o génio para uma penada de tal maneira vigorosa que impressionasse os que se acham desde há milénios no Parnaso? A resposta, afinal, é simples e complicada. Porque os que escreveram nesta língua não quiseram ficar na sombra das suas criações, são eles próprios os protagonistas, e o que acima de tudo lhes interessou foi o estilo. É que, em vez de fazer nome escrevendo-o na carne, na pele de muitas, feitos Don Juan, o que lhes interessava acima de tudo era prender à circulação sanguínea da sua escrita o próprio coração da língua.
Nada de voltas ao mundo nem ao centro da Terra. Mesmo um Fernão Mendes Pinto, que tão longe foi, sentiu necessidade de dar umas tangas, embelezar a coisa para que a prosa não ficasse refém da vontadinha do destino. Veja-se como fizeram Camilo, Fialho de Almeida, Raul Brandão e outros tantos. Ou, saltando o Atlântico, Machado de Assis, Graciliano Ramos ou Guimarães Rosa. O importante sempre foi menos a história do que propriamente a graça no contá-la. E, nisso, envaidecer a língua. De tal modo que, algo exasperado, Herberto Helder foi tão curto e grosso e, ainda assim, sumptuoso ao questionar-se: “a acerba, funda língua portuguesa,/ língua-mãe, puta de língua, que fazer dela?/ escorchá-la viva, a cabra!/ transá-la?/ nenhum autor, nunca mais, nada,/ se a mão térmica, se a técnica dessa mão,/ que violência, que mansuetude!”
Pois, vá-se lá ver aos anais, mesmo o mais coxo dos cânones deixa claro que o nosso grande feito acabou sendo o estilo. Os personagens que se fizeram imortais são eles, as vozes que trazemos na cabeça, os que treparam por ela acima, conquistaram montanhas, o pico da expressão; de tal modo que é na frase, às vezes nem é preciso o parágrafo, numa frase está contida a quintessência desta “paixão verbal do mundo”.
Estas ligas inconfundíveis, de algum modo unidas, enfrentam-se, reluzindo umas nas outras, e são o produto de alquimias com as quais cada um destes químicos das letras aumentam o fulgor da língua. Nisto também percebemos a inquietação e o génio de Pessoa, tímido à superfície, debaixo da mesa dos dias, mas, na literatura, que fanfarrão, e um batoteiro: não contente em ter um lugar à cabeceira, dividiu-se, quer dizer, multiplicou-se, na ganância de inscrever quatro, aliás cinco nomes, de ter uma mesa só para ele. E diz-se que preparava uma autêntica invasão, estando contabilizados, segundo os que o estudam – e esses, para todos os efeitos, mais do que críticos são matemáticos -, mais de uma centena de heterónimos.
Com este balanço todo chegamos já na cauda ao nome que nos trouxe inspirados a isto tudo: Nelson Rodrigues. Por esta altura, já todos estamos embalados na notícia de que o anjo pornográfico chegou finalmente às nossas livrarias. O atraso imperdoável tem sido compensado de forma graciosa nas edições nada emproadas, maneirinhas, justas que lhe tem feito a Tinta-da-China. E o que temos para já são três volumes e uma dose para fartar brutos desses que gostam de ver a língua bem amarrada, como um saco para levar-se o mundo às costas, a gemer-se todo, a gritar aos céus e ao inferno, até para contar umas coisas de nada. Primeiro chegaram “O Homem Fatal” e “A Vida Como Ela É”. Antologias nos dois casos, uma das crónicas e a outra dos contos. Entretanto, já temos também o volume das memórias, “A Menina Sem Estrela”.
Qualquer destes nos diz ao fim de uns poucos pontos finais a estirpe a que Nelson pertence. E este volume mais recente, se organizado em capítulos, não deixa de ser escalado segundo o perfeito talhe das suas crónicas. Passando o fio da sua prosa – que parece ela mesma ter uma caixa de velocidades espantosa, e uma marcha-à-ré que lhe permite fazer do tempo um ioiô -, ele vai-se reconstituindo ao sabor das urgências, emoções, dispondo na caderneta as pessoas e os lugares que fazem da sua humanidade uma de muitos rostos, figuras que regressam à vida. Ficou nelas um tempo que tem uma mão de fora, dando-lhe corda e deixando a bailarina na caixa de música dar mais umas voltas. Nestas páginas relatam-se os acidentes fabulosos e os atrozes de um homem que parece ter esgotado a imaginação da vida na sua capacidade de ser ralada, se tornar episódica, de ir da anedota ao relato cheio de exemplaridade moral. Mais do que os factos, Nelson soube nutrir uma perspetiva, e o seu olhar mantém-se tão vivo quanto antes, tão capaz de olhar os dias de hoje como os que viveu.
Para encerrar, fazendo um passe para que ele pegue e leve mais longe, voltamos à sua prosa, aquela linha de um vigor tal capaz de segurar e cansar a mais furiosa baleia do estilo. E nós, pequenos peixes, ficamos como que despejados do aquário na carpete, soluçando sem ar, por sentir mais próxima essa voz de um morto mais vivo do que qualquer dos cronistas que nos encharcam hoje com uma prosa sem nenhum sal – por causa, já se sabe, dos corações mais fracos. Desaparecido há 36 anos, este homem mostra-se lúcido até hoje, e genial até nos momentos de insensatez.