Os jornais em 2017


Não podemos ser órgãos difusores do medo, mas também não podemos promover uma ilusão de segurança que manifestamente já não existe


Cada vez que converso sobre jornalismo acabo a citar o Gabriel García Márquez, no livro “Eu Não Venho Fazer um Discurso”. Eu também não venho fazer um discurso, mas lembro um capítulo que Márquez escreveu sobre o jornalismo como a profissão mais bela do mundo.

Ele, que foi jornalista, dizia que “a boa notícia em primeira mão não é a que se dá primeiro, mas sim a que se dá melhor”. Que “o problema parece ser que o ofício não conseguiu evoluir à mesma velocidade que os seus instrumentos e os jornalistas ficaram a procurar o caminho às apalpadelas”.

De uma maneira ou de outra, já todos dissemos isto antes deste ano. A premissa de que García Márquez partia e a sua conclusão eram a mesma: que “o jornalismo aprende-se fazendo”.

Em 2017, o mundo perde as suas certezas. A ordem mundial do pós-ii Guerra, a NATO, as Nações Unidas, a construção europeia estão em risco. Já não são garantidas, e muito menos consensuais. A multipolaridade de hoje é incontrolável; ao contrário até da terrível bipolaridade da Guerra Fria. Defesa, economia e Estado: estão os três em crise há demasiado tempo e isso assusta quem nos lê.

Essas incertezas levam a que o medo prospere. E no campo do medo proliferam os populistas. Populistas cujos melhores amigos são antieuropeus e não descartam cortar o financiamento à ONU ou à Aliança Atlântica.

A paz, a segurança, e o Estado social europeu são tudo menos certos para o nosso leitor atual.

Até coisas relativamente menos amplas, como um candidato apoiado pelo Ku Klux Klan não ganhar a presidência norte-americana, os papados durarem até ao falecimento do Papa, quem vence eleições legislativas governar em Portugal, acabaram. Tudo isso acabou ou, pelo menos, mudou bastante.

A batalha entre populismo e democracia, que marcará este ano, é paralela à fronteira entre sensacionalismo e verdade. Nesse limbo, entre a impressão e a informação, devemos procurar o equilíbrio entre não sermos órgãos de propaganda do medo e não promovermos uma ilusão de segurança que manifestamente já não existe.

A procura desse equilíbrio é difícil e diária. E a verdade é que eu não trago uma resposta para esta questão. Relembro só o que escreveu García Márquez: que só se aprende fazendo.

Hoje chamamos pós-verdade à mentira e “fake news” a notícias de quem não fez o trabalho de casa. Temos um “líder do mundo livre” que censura repórteres em direto. Renomeámos os chavões porque os populistas voltaram. E, em populismo, o jornalista é amigo enquanto servir a propaganda e inimigo enquanto fizer o seu trabalho. Eu tenciono ser inimigo.

Preocupa-me substancialmente a legitimação que parte da nossa classe política e parte da classe jornalística fazem de páginas anónimas de fiscalização à imprensa. Sim, é verdade que precisamos de ser criticados. Mas aqui, em congresso, na praça pública, a dar o nome, que é aquilo que nós fazemos todos os dias quando assinamos uma notícia.

Temos de negar a polícia política virtual, que ao contrário de nós não tem rosto.

O jornalista livre deve ser imparcial sobre tudo menos a sua própria liberdade. Não há zonas cinzentas na defesa da imprensa livre e da liberdade que ela representa. Ou somos contra ou somos a favor.

Há 400 anos, em Florença, um homem de nome impronunciável inaugurou a filosofia política moderna. Escreveu que a política era o espelho mais pleno da natureza humana; que era na política que o homem se refletia na sua plenitude, para o bem e para o mal. Eu acredito que é a imprensa que mantém a luz acesa para o mundo ver esse reflexo. Para o mundo se poder olhar todos os dias.

Em 2017, espero que nós não deixemos que essa luz se desvaneça. Que ela se mantenha firme, brilhante e independente.