O autor de Ostinato Rigore comparava o seu trabalho de poeta ao ofício de pedreiro que fora o do avô, concluindo a aproximação nos seguintes termos: «Ele usava o granito como material, as suas casas estão ainda de pé; o neto trabalha com poeira, sem nenhuma pretensão de desafiar o tempo». A verdade é que são muitas as vozes que dizem que terá construído um monumento perene.
«No prato da balança um verso basta/ para pesar no outro a minha vida» – escreveu Eugénio de Andrade num breve poema, consciente do desacerto que há entre a vida e a poesia, que nele não diferiam.
António Ramos Rosa chamou-lhe rei Midas do verbo: palavra que tocasse virava ouro de lei. E tocou algumas. Palavras «nuas e limpas» que apelam aos sentidos e se combinam em exercício conjugado da inteligência e da emoção – o imenso tesouro de Eugénio de Andrade, herdeiro de «um desprezo pelo luxo» que, nas suas múltiplas formas, considerava uma degradação.
Revelado em 1948 com As Mãos e os Frutos, o seu mais emblemático livro, que então impressionava pela afirmação da corporalidade e do desejo, estreia-se com Adolescente (1942), volume que depois retirou da sua bibliografia por considerar que o verdadeiro timbre da sua voz poética estava ainda ausente.
Definiu-se como «um poeta solar» e respondia mais depressa à chamada da «luz limpa do sul» com que incendiava os seus versos que ao nome de baptismo: José Fontinhas, nascido na Póvoa da Atalaia, uma pequena aldeia da Beira Baixa, situada entre o Fundão e Castelo Branco, cidade de onde foi levado para Lisboa, aos sete anos, pela mão da mãe Maria dos Anjos, figura tutelar da sua vida e presença central da sua poética. Uma poética que os títulos em prosa – Memória Doutro Rio (1978), Vertentes do Olhar (1987) – realizam com igual fulgor.
Da primeira infância reterá, para além das feridas pela ausência do pai, figura que recusou «a vida inteira. Inteiramente», o berço camponês de nascimento, uma «arquitectura extremamente clara e despedida», que os seus poemas tanto reflectem, lugares selectos, despertares, incluindo o da poesia.
Em 1947, já regressado de Coimbra, onde permanece entre 1943 e 1946, estreitando relações de amizade com Miguel Torga e estabelecendo um diálogo cultural com figuras de sucessivas gerações (Afonso Duarte, Paulo Quintela, Eduardo Lourenço, Carlos de Oliveira), torna-se funcionário público, passando a trabalhar como inspector administrativo nos Serviços Médico-Sociais, cargo que exercerá ao longo de 35 anos. Resolvida a questão económica, pôde prosseguir assim o seu ofício poético, a busca rigorosa da linguagem, sem pressa, seguindo, de resto, o «Conselho» metaliterário que a si mesmo dera na colectânea que o impõe como poeta: «Sê paciente; espera/ que a palavra amadureça/ e se desprenda como um fruto/ ao passar o vento que a mereça». O segundo livro de poesia, Os Amantes Sem Dinheiro, surgia em 1950.
Neste mesmo ano, a sua vida profissional na Inspecção Administrativa condu-lo ao Porto, cidade que adopta como a sua terra e onde viverá até à morte, sempre ao abrigo da vida social, literária e mundana, atento às coisas simples e às palavras que as dizem: neve, água, mar, navio, vento, fruto, terra, ave, boca – eis o seu léxico, de larga fluência metafórica, rigorosamente eleito e carregado de uma singular energia sémica que se expande e reformula.
As Palavras Interditas (1951), Ostinato Rigore (1964), Obscuro Domínio (1971), Limiar dos Pássaros (1972), Matéria Solar (1980), O Sal da Língua (1995), Os Lugares do Lume (1998) são alguns dos mais conhecidos títulos que lhe compõem o vulto de poeta ímpar.
Antologiador de Camões e de Pessoa, autor de uma recolha de poesia erótica contemporânea (Eros de Passagem, 1982) e de duas selecções de poesia e prosa dedicadas ao Porto e a Coimbra – respectivamente Daqui Houve Nome Portugal (1968) e Memórias de Alegria (1971) –, Eugénio de Andrade ofereceu-nos também um panorama geral da poesia portuguesa, desde os cancioneiros medievais até Ruy Belo. Entre os muitos prémios com que foi distinguido, figura o Prémio Camões (2001).
Morreu em Junho de 2005. Estava escrito: «Pela manhã de Junho é que eu iria/ pela última vez».