“Todas as revoluções se evaporam e deixam apenas o limo de uma nova burocracia.” Franz Kafka
Pouquíssima gente verdadeiramente se indignou. E mesmo os que se referiram ao assunto fizeram-no muito a medo e de mansinho. Mas aconteceu. Aconteceu há várias semanas atrás. E foram exemplos de como, na nossa democracia representativa, a resistência à nossa liberdade de opinião, de manifestação e de indignação é muito grande. Refiro- -me, em simultâneo, por um lado, à receção oficial do Estado português a suas altezas reais de Espanha, em particular a receção realizada na Assembleia da República, e, logo a seguir, à evocação parlamentar de Fidel Castro, antigo presidente de Cuba.
E ao comportamento bipolar, política e parlamentarmente, do Bloco de Esquerda (BE). Que nem se levantou, quanto mais aplaudiu, o rei D. Filipe (por sinal, chefe de Estado espanhol reconhecido como legítimo interna e externamente) na cerimónia realizada na Assembleia da República. O mesmo Bloco de Esquerda que, no momento da manifestação de pesar parlamentar pelo falecimento de Fidel Castro, se manifestou com toda a pompa e solenidade. E, na prática, o que esteve na base de tudo isto? A simpatia do BE (e de outros movimentos que lhe deram origem) pela ETA e pelas suas causas? Não. Foi o não reconhecimento da hereditariedade da monarquia por via sanguínea, no topo da hierarquia do Estado espanhol, um rei, filho de um ex-rei, neto de um monarca (por sinal, que se refugiou em Portugal contra a ditadura fascista de Franco), que não foi eleito, e que só é rei por relação de sangue e sem voto popular? Curiosa esta particularidade fundada na doutrina recente do Podemos espanhol.
Aliás, os mesmos que, logo a seguir, com pompa e solenidade e emoção, enalteceram Fidel Castro, revolucionário, nunca eleito (antes pelo contrário) e que até deixou o seu irmão, Raúl Castro, a suceder-lhe (curiosa situação com predomínio das relações de sangue e de direitos e sucessões eleitorais de base popular). Grandes contradições, incoerências de um partido político que vive também muito dos laços de sangue direto, ao nível do recrutamento político, de vários(as) dos(as) seus(suas) mais destacados(as) protagonistas. Ou seja, para o BE, as relações de sangue e afins são boas, de reconhecer e respeitadas, desde que se fundem em meras questões ideológicas, e não de Estado, ao nível institucional e de natureza de regime político. Tudo o resto degenera em relações automaticamente condenadas por não preencherem os cânones da revolução e dos objetivos a atingir. Mas há incoerências que vêm por bem.
Nomeadamente para que através destes exemplos se perceba o que cada um é verdadeiramente. E se perceba o que acontecerá se alguma vez determinadas pessoas e determinados partidos tiverem responsabilidade ao mais alto nível do Estado. Mesmo depois de se terem afastado dos gregos do Syriza, agora estão numa espécie de modo de imitação do Podemos espanhol. Que vive, curiosamente, um tempo de perseguição interna contra os seus críticos e divergentes. Como é curioso que a extrema-esquerda seja incoerente e até, em muitos domínios, coloque em causa a sua tradição e inspiração marxista-leninista.
Enquanto isso acontece vai alimentando desconsiderações em nome de uma moral revolucionária, de uma ética republicana descartável e de uma contestação política típica de uma estirpe hooliganística que se alimenta da soberba etária e contestatária, associadas a factos que pouco têm que ver com o Estado de direito democrático formal, material e procedimentalmente. A sua adesão à democracia representativa, muitas vezes, mais não é do que uma adesão de conveniência.
É por isso que são o que são: lobos(as) verdadeiros(as) travestidos(as de cordeiros. É que quem ouve e vê alguns destes protagonistas da extrema-esquerda caviar percebe facilmente que as suas relações (ralações) de sangue são um bom exemplo de muitas das suas incoerências. Mas continuam a ser levados ao colo por muitos media novos e velhos.
Escreve à segunda-feira